domingo, 20 de julho de 2008

"O HOMEM DO POVO" - OSWALD DE ANDRADE E PAGU

"O HOMEM DO POVO":
O PASQUIM DE
OSWALD DE ANDRADE
E
PATRÍCIA GALVÃO (PAGU)



INTRODUÇÃO (POUCO NECESSÁRIA, MAS...)


Como simples cidadão mortal, ex-professor de Eletricidade e de Desenho Técnico, ex-projetista de linhas de transmissão e distribuição de energia elétrica (com o “ex” já define que estou e sou aposentado), tenho uma biblioteca. Por ser doméstica e de um “ex” pessimamente remunerado funcionário de uma das empresas do Grupo Votorantin, até que minha biblioteca é respeitável (atualmente com mais de 3 mil volumes). Logicamente só com obras que me interessam e que o meu degustar literário exige. Assim como tenho obras raríssimas, também tenho aquelas porcarias que às vezes são compradas numa banca de revista de rodoviária para “tentar” serem lidas durante uma viagem. Orgulhosamente não tenho nenhuma anti-obra do paulo Coelho e nem da A Gata-triste. E, como apaixonado pelo Modernismo procuro, de acordo com as poucas sobras financeiras de final de mês, ir adquirindo obras Modernistas, tanto dos literatos como dos artistas plásticos – não deixando nunca de buscar pelas obras dos pesquisadores, historiadores e mestres da literatura (não vou citar nenhum nome, pois corro o risco de deixar a impressão de que só gosto destes e não daqueles). Mas... estou prefaciando toda essa minha paixão, somente para dizer que não consegui até hoje um exemplar da edição fac-similada do “O HOMEM DO POVO”, lançado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - em 1985 saiu a 2ª Edição com a belíssima Introdução de Augusto de Campos. Isso deixa minha biblioteca parecendo exatamente comigo: pobre.
No mês passado, numa das visitas na Biblioteca Municipal da minha querida Piraju, encontrei um exemplar do O HOMEM DO POVO, doado pelo grandioso e querido Diretor Teatral, Sr. Márcio Aurélio Pires de Almeida – que orgulhosamente posso dizer: é um Pirajuense e meu parente. Sem nenhum vacilo assinei o livro de empréstimo e, cuidadosamente: li, reli e iniciei a digitação de tudo que nele existe, hora rindo muito das colocações e palavras utilizadas por Oswald e Pagu, hora imaginando os dois datilografando as matérias e lendo para o outro pedindo opinião e, logicamente, os dois “rachando o bico” de tanto rirem. Pode até ser que algum novo leitor do RETALHOS DO MODERNISMO venha pensar que sou um fanático, um babaca e sei lá mais que termos podem me classificar... Mas, como diz o ditado caipira: “uns gosta dos zóios e otros da raméla” – para mim é uma satisfação imensa poder estar falando sobre o O HOMEM DO POVO e postando a matéria que segue, pois ela chega a provocar orgasmo mental – pelo menos naqueles que estudam o Modernismo ou admiram Oswald e Pagu ou ainda: naqueles que estão “mentalmente” ativos.
(Luiz de Almeida)


ANTECEDENTES DO “O HOMEM DO POVO”

Em 1931, Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, vão a Montevidéu para um encontro com Luís Carlos Prestes que estava exilado por lá. Apenas para ilustrar o texto, um resumo rápido da vida política de Luís Carlos Prestes:

“Nasceu em Porto Alegre em 1898. Foi político e militar. Liderou o PC – Partido Comunista no Brasil por mais de 50 anos. Em 1922, participou do movimento tenentista contra o governo de Artur Bernardes. Em 1924, liderados por Prestes, a oposição militar brasileira criaram a famosa “Coluna Prestes”. Em 1927, depois de muito caminhar pelo território nacional, Prestes exilou-se na Bolívia, onde teve o primeiro contato com as ideologias do Partido Comunista (PC). Da Bolívia, Prestes foi para a Moscou onde converteu-se definitivamente à ideologia marxista. Retornou clandestinamente ao Brasil em 1935, casado com a alemã e comunista Olga Benário. O objetivo de Prestes era concretizar o PC no Brasil. Após liderar o fracassado golpe conhecido como Intentona Comunista, Preste foi preso e exilado. Sua mulher, embora grávida, foi mandada de volta para Alemanha, onde morreu num campo de concentração nazista. Prestes continuou sua luta em prol do PC. Foi anistiado, preso, exilado, anistiado, preso e exilado... Em 1979, com a anistia, Prestes retornou ao Brasil, mas o PC brasileiro já estava fracassado e, no final da vida, Prestes afastou-se definitivamente do PC. Faleceu em 1990”(Fonte: Nova Enciclopédia Ilustrada Folha de S. Paulo – Vol. 2 – pág. 795).

Voltando as atenções para Oswald e Pagu, esse primeiro encontro do casal com Luís Carlos Prestes, foi comentado por Oswald de Andrade como o ponto de partida para que ele deixasse de lado (encerrasse com prazer) as idéias modernistas de 22 e aderisse às causas do proletariado. Vera M. Chalmers, no livro: “3 linhas e 4 verdades – o jornalismo de Oswald de Andrade – Livraria Duas Cidades – SP, 1976 – p.149”, narra esse comentário e essa mudança de postura de Oswald de Andrade:

“(...)Encontrei-o em companhia de Silo Meireles. E, durante o nosso primeiro encontro, vi que aquele capitão do exército era um intelectual, cheio não só de cultura política, mas de cultura geral. O seu conhecimento das doutrinas sociais era completo. Conversei com ele três noites a fio nos cafés de Montevidéu. E dede aí toda a minha vida se transformou. Encerrei com prazer o período do Modernismo. Pois aquele homem me apontava um caminho de tarefas mais úteis e mais claras. Desde então se já era um escritor progressista que tinha como credenciais a parte ativa tomada na renovação da prosa e da poesia do Brasil desde 22, pude ser esse mesmo escritor a serviço de uma causa, a causa do proletariado que Prestes encarnava. Pude caminhar com homens como Jorge Amado, como Aníbal e Dionélio Machado, como Oswaldo Costa, Álvaro Moreyra e Aparício Torelli. Com Prestes aprendi muito naquelas conversas de café em Montevidéu.”
OSWALD FUNDA O JORNAL
“O HOMEM DO POVO”
Retornando ao Brasil, Oswald e Pagu filiam-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Militando no partido, Oswald funda e dirige o jornal “O HOMEM DO POVO”, em março de 1931. Augusto de Campos, na Introdução do “O HOMEM DO POVO” – Coleção completa e fac-similar do jornal criado e dirigido por Oswald de Andrade e Patrícia Galvão (Pagu), 2ª Ed. SP. 1985, editado pela Imprensa Oficial do Estado S.A. IMESP – Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo, pág. 10, descreve a criação do Jornal:
“(...).
O Homem do Povo, lançado em 1931, é um registro da fase mais sectária e “engaée” da atuação política de Oswald e Pagu, numa primeira postura de adesão quase que incondicional às “verdades” partidárias e ao proselitismo do PC.
Trata-se de um jornal panfletário, de um assumido pasquim político, que teve curtíssima duração – apenas 8 números. Em formato tablóide, 48 x 34 cm, com 6 páginas e títulos desenhados em letras “art déco”, a publicação apresentava como editor Álvaro Duarte e como secretários Pagu e Queiroz Lima, sob a “direção do homem do povo”. Oswald assinava os editoriais, que também apareciam com a rubrica de “O Homem do Povo”. A sede da redação ficava no Palacete Rolim, à Praça da Sé n.º 9-E.
Programado para circular às 3.ªs, 5.ªs e sábados, conforme se lê no anúncio da última página do número 2, o jornal teve as seguintes publicações: n.º 1 (sexta-feira, 27 de março); n.º 2 (sábado, 28 de março); n.º 3 (terça-feira, 31 de março); n.º 4 (quinta-feira, 2 de abril); n.º 5 (sábado, 4 de abril); nº 6 (terça-feira, 7 de abril); n.º 7 (quinta-feira, 9 de abril); e n.º 8 (segunda-feira, 13 de abril). Paradoxalmente, o povo não leu “O Homem do Povo”. Leram-no alguns intelectuais, os estudantes de Direito... e a polícia, que acabaria proibindo a sua circulação após a ocorrência, nos dias 9 e 13 de abril, de graves acidentes, que tentaram por duas vezes empastelar o jornal por causa de dois editoriais considerados ofensivos à tradicional Faculdade do Largo de São Francisco. (...)”.
Todo tumulto que culminou no fechamento do jornal “O Homem do Povo”, foi iniciado após o primeiro editorial escrito por Oswald de Andrade na edição n.º 7, de 9 de Abril de 1931, com o título “as angustias de piratininga”, conforme pode ser lido a seguir, na íntegra e sem alterações na escrita original:AS ANGUSTIAS DE PIRATININGA

Precioso e ridículo, como literatura política, nullo de visão social, fechado no mais estreito e pífio provincianismo, vertendo apenas o puz que brota dos dois cancros de São Paulo – a Faculdade de Direito e o café – o manifesto do Partido Democrático fixa bem para os olhos ingenuos dos que acreditam nas meias-revoluções, de que tamanho é a guela ambiciosa e hypocrita dos exploradores que depois de ter erguido palácios e fazendas, a chicote e a tronco de escravos – pretendem continuar a sugar o suor dos que trabalham, a troco de respresental-os na comedia dos cargos públicos.
Cynicos, comediantes sem treino, pois foi da deslavada, da mais clara exploração feudal que até hoje viveram do alto de suas cathedras de professores, deu suas bancas de jornalistas e de suas mesas de jogo – eil-os que surgem ao embate da primeira crise séria, chamando a si o encargo de ser o traço de União entre o governo e o povo!
Traço de união entre o parasita e o explorado, entre o que come e o que é comido, entre o carrasco e a victima, elles mesmo confessam que são a força lenta onde esperneia o trabalhador da cidade e dos campos, batido, humilhado, morto de miseria e de desesperança, mas que num ultimo espasmo ha de se despegar dos que o esganam, para leval-os por sua vez ao patíbulo definitivo que pleiteiam e merecem.
Felizmente, a degringolada já os attingia e as angustias de Piratininga são simplesmente feitas do odio covarde dos que sempre se viram na farra facil da Edade Media que o café produzia e a Faculdade abonçoava em nome do Direito Burguez, e agora se vêem forçados a subir os elevadores dos que imponentemente emprestam a 5% ao mez, para implorar as reformas já obtidas nos Bancos da grande fuzarca.
Vencidos pelo phenomeno da agonia capitalista, a sua cégueira ideologica attribue intenções communistas a sinceros consolidadores da Ordem Burgueza, como francamente são o Coronel João Alberto e o General Miguel Costa, com tod a razão mais de uma vez apontados ao odio das massas exploradas pelo alfifalante de Luiz Carlos Prestes.
Consolidadores fascistas, a sua bôa vontade esbarra na inconcertabilidade da maquina onde inutilmente querem andar. Que entreguem essa lata velha, esse forde furado sem radiador nem gazolina, ao ganancioso grupo de fazendeiros e professores que ambiciona os ultimos lucros do ferro miúdo.
O dr. Julio Prestes gastava trezentos contos em palácio, o Coronel João Alberto gasta seiscentos, o dr. Morato gastará novecentos.
Que o governo dos tenentes se demitta e entregue ao Partido Democratico a maquina podre do Estado Burguez que enganou a economia paulista – para que perante as massas elucidadas, seja essa a ultima tragica experiencia de desastre, - é o deseja e pede
o h o m e m d o p o v o
Após esse editorial, os estudantes da Faculdade de Direito iniciaram uma verdadeira guerra contra o “O HOMEM DO POVO”, sempre na tentativa de atingir Oswald de Andrade. A imprensa não perdeu tempo. Com manchetes em letras garrafais e fotos das aglomerações e dos tumultos, colaboraram e agitaram mais ainda a fúria dos estudantes de Direito. A imprensa, logicamente comandada e com o respaldo também de muitos que haviam sido atacados e tripudiados por Oswald e Pagu nas matérias editadas no O HOMEM DO POVO, como os políticos, a classe burguesa paulistana, a polícia, o clero e alguns intelectuais da época, chegou a inventar que num dos confrontos com os estudantes, “a moça que vivia com diretor do O HOMEM DO POVO”, Pagu, havia dado dois tiros. Essa arma nunca foi encontrada.
Os políticos e o clero queriam Oswald e Pagu presos, pois o O HOMEM DO POVO incomodava. Em quase todas as edições Oswald circulou uma enquete, inclusive com explicações de como se votava, com a seguinte chamada: “QUAL É O MAIOR BANDIDO DO BRASIL?”. Em cada edição era publicado o resultado da enquete com o nome dos mais votados. Até hoje ninguém confirma se houve de fato alguém que tivesse encaminhado seu voto para o jornal. Alguns pesquisadores chegam afirmar que tudo era pura invenção do Oswald, da Pagu, com palpites do Plínio Salgado.
Não poderia encerrar este texto sem adicionar os ditos do Senhor Augusto de Campos no final da sua Introdução na Edição fac-símile já mencionada:
“(...).
Mesmo sem se concordar com radicalidade e o sectarismo das diatribes de “O Homem do Povo”, é possível lê-lo com interesse e curiosidade. Não só pelo fato de estar ligado a personalidades tão fascinantes como Oswald e Pagu, partindo-se do pressuposto de que, quando um autor é interessante, tudo o que se relaciona com ele – até as obras menores – se torna interessante, por constituir subsídio para a compreensão de outros aspectos de maior relevância para a sua caracterização.
Sem dúvida, aqui não se encontrarão as grandes páginas de invenção estilística de “João Miramar e Serafim Ponte Grande”. A “Revista de Antropofagia” é mais rica em idéias e em criatividade, e os estereótipos da catequese política estão hoje mais desgastados do que antes. Mas, no desleixo das suas linhas apressadas, no seu amadorismo algo provinciano, na sua ingenuidade quixotesca, “O Homem do Povo” traz, ao lado da marca feroz e veraz da utopia, o rastro literário da modernidade e da paródia que dele fazem como que um prolongamento da “2.ª dentição antropofágica”. Este pasquim proletário não deixa de ser – como eu já afirmei em “Pagu: Vida-Obra – um descendente engajado da “Revista de Antropofagia”.
Estilhaços do riso oswaldiano espoucam por esses textos irados, fazendo com que eles desbordem da razão política, datada e perecível, para se incorporarem ao plano menos transitório das criações intelectuais. “Do meu fundamental anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo”, disse Oswald no prefácio ao “Serafim”. Por isso, esse HOMEM DO POVO, que o povo não leu, pode ser lido agora, e não apenas como documento de uma época, suas lutas e suas contradições. Podemos rir com ele. E até perdoar facilmente os seus desmandos e excessos verbais. Vão por conta da impaciência, da impotência e do desespero dos que tentam pensar com generosidade nos desfavorecidos sociais, num mundo onde ainda prevalece a “manunkind”, de que fala o poeta norte-americano E.E. Cummings – a “humanimaldade” -, um mundo onde até hoje, depois de meio século, exauridas as utopias, a justiça e a fraternidade estão longe de ser alcançadas”.
(Augusto de Campos – Introdução do “O HOMEM DO POVO” – Coleção completa e fac-similar do jornal criado e dirigido por Oswald de Andrade e Patrícia Galvão (Pagu), 2ª Ed. SP. 1985, editado pela Imprensa Oficial do Estado S.A. IMESP – Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo, pág. 12).
(Foto do livro Pagu - Livre na Imaginação e no Espaço - Lúcia M. Teixeira Furlani - Editora Unisanta - 4ª Ed. - pág. 45)

terça-feira, 15 de julho de 2008

CARTA-TESTAMENTO DE MÁRIO DE ANDRADE

CARTA-TESTAMENTO ESCRITA POR
MÁRIO DE ANDRADE EM
22-3-1944
DESTINATÁRIO:
SEU IRMÃO CARLOS



PREFÁCIO NECESSÁRIO:

Antes da “carta-testamento” escrita por Mário de Andrade ao seu irmão Carlos, em 22 de março de 1944, que foi postada na íntegra, inclusive observando o estilo da escrita utilizada por Mário, é de grande importância narrar o depoimento da Sra. Oneyda Alvarenga, (ALVARENGA, Oneyda. In Mário de Andrade, um Pouco. Livraria José Olympio Editora – SCET-CSC. São Paulo, 1974 – p. 11/12), como segue:

“(...). Os amigos mais chegados de Mário de Andrade talvez saibam, como eu, que nos seus últimos tempos de vida ele falava muito que morreria aos cinqüenta anos e não lhe interessava viver além disso. Depois, como passara doente o ano de 1943, adiara a morte para os cinqüenta e um, explicando meio a sério meio de brincadeira não ser justo morrer aos cinqüenta, pois o ano de doença não fora vivido. Foi essa divinação assustadora da morte que em 1944 o levou a me contar várias vezes sua intenção de cuidar, antes de mais nada, da sua obra literária, que pessoalmente o interessava mais. Quanto ao matéria folclórico que colhera, já não tinha nem tempo nem paciência e não teria vida suficiente para tratar dele: ficava para mim, eu o estudaria depois que ele morresse. (...)”.

Em carta a Manuel Bandeira, datada de 22 de abril de 1933, Mário de Andrade ainda mantinha a esperança e o entusiasmo para o trabalho, apesar de já estar passando por momentos de inoportuno estado doentio, mas até então, não havia ainda mencionado nada a respeito da própria morte. Assim escreveu naquela carta (*):

“São Paulo, 22 de abril de 1933.
Manu,
pretendia lhe escrever por estes dias uma carta bem longa, mas uma dessas viagens bruscas me faz apressar a escrita e diminuir aquele abandono pretendido de mim, que sempre me faz comprido. Mas o caso é que me surgiu de supetão, e indesejabilíssima, uma nefrite, e do dia para noite me vi obrigado a pedir licença no Conservatório, mandar os alunos particulares passear e procurar um abrigo lá na chacra do tio Pio pra um repouso de pelo menos vinte dias de cama, que é o que por enquanto pedem os médicos. Se os futuros exames provarem a melhora de condições dos rins, volto pra o trabalho, se não, inda não sei o que vai ser. Você compreende que estas confissões não são assim pra você sem alguma melancolia. Estou meio assustado, confesso, e não tenho a mínima intenção de morrer, ou pra falar mais suavemente, me inutilizar tão cedo. (...)”.
(Grifo meu - cor azul).

Independente de outras fontes (textos e cartas) onde Mário de Andrade comenta sobre a possibilidade prematura da sua morte, o Blog optou dar mais importância na “Carta-Testamento”, pois a partir da morte do autor foi essa carta que originou e pautou todos os trabalhos e estudos da vida de Mário de Andrade. Sendo assim, a carta, “sem nenhuma modificação na grafia original”:


CARTA-TESTAMENTO DE
MÁRIO DE ANDRADE


S. Paulo, 22-III-44 (1)

Carlos

Essa história de operação, sempre é perigoso e eu costumo pensar que pertence à dignidade humana contar sempre com a morte. Por isso lhe escrevo esta carta rápida, apenas para orientar você sobre meus desejos e intenções, a respeito exclusivamente das coisas desta terra.
Minhas obras. Deixo bastante coisa inédita, a maioria ainda se fazendo. Coisas realmente em redação definitiva deixo apenas uma série de contos, inéditos ou reformados depois da publicação, e os meus poemas “Café” e “Carro da Miséria”. Isto tudo deve ser incluído nas minhas Obras Completas. O “Carro da Miséria” será incluído no volume das “Poesias Completas”, logo antes da parte intitulada “Livro Azul”. O “Café” com nota que só a parte de poesia está em redação, [definitiva?] e a parte “Descrição” apenas em primeira anotação, terá publicação à parte. Por intermédio do Luís Saia, você entrará em combinação com o Clóvis Graciano, que o ia editar de acordo com um projeto de contrato que tenho sobre a minha secretária (2). Os direitos autorais dessa edição, bem como o das minhas “Obras Completas” com o editor Martins, desejo que revertam aos filhos de Lurdes, pra (3) educação intelectual e física deles. Bem, quanto à minha herança em dinheiro, vinda de meu pai, isso não me interessa, façam como quiserem. Os contos farão um livro à parte, pertencente às Obras Completas.
Muito desagradável é o resto dos meus inéditos, que ainda estão por se fazer. Conferências como o “Seqüestro da Dona Ausente” e “Música de Feitiçaria no Brasil” podem ser publicadas tal como estão, com a advertência em subtítulo “conferência literária” porque o trabalho definitivo era muito mais sério e científico. Tal como está não passa de sugestão pra trabalhos de outrem. Os casos mais lastimáveis são o das “Danças Dramáticas” e do “Padre Jesuíno do Monte Castelo”. Estas obras não só não estão em redação definitiva como contêm erros de história ou crítica, que eu pretendia corrigir depois e fui deixando assim. Muito freqüente, meu processo de trabalho era assim, ir redigindo o que eu não sabia si era assim mas me palpitava ser assim, dependendo de verificação ou conhecimento futuro. Ultimamente até em dezenas de afirmativas eu continuava com um “(verificar” por depender desse trabalho de verificação ou reverificação futura. Agia assim pra não prejudicar o ritmo normal da redação. Assim na “Vida” do padre Jesuíno em conto com um [sic; “eu conto uma”] passagem de Feijó moço e estudante em Itu que depois pude saber que não existiu (4). Deixei para consertar depois e ainda não está consertado. Nas Danças Dramáticas também afirmo que não houve nenhuma de relação “histórica” com o Brasil e, houve sim, depois é que pude saber, como os “Quilombos” de Alagoas. Tais obras, portanto, não devem ser publicadas. Mas podem ficar, com o consulta, objeto de trabalha alheio, numa biblioteca pública, a Municipal de preferência.
Dos meus “trabalhos” só resta o fichário. Este deve ser repartido entre meus dois amigos Oneida Alvarenga e Luiz Saia que de comum acordo, sem interferência nenhuma da família, farão dos fichários o que quiserem.
Resta falar de que ajuntei e ganhei por mim. Minhas cartas. Toda a minha correspondência, sem excepção, eu deixo para a Academia Paulista de Letras. Deve ser fechada e lacrada pela família e entregue para só poder ser aberta e examinada 50 (cinqüenta) anos depois da minha morte.
Toda minha coleção de gravuras de qualquer processo de gravação, monotipias, aquarelas, guaches e desenhos deve ser entregue à Biblioteca Municipal.
Toda a minha coleção de quadros a ólio ou têmpera será oferecida à Pinacoteca de São Paulo.
Toda a minha iconografia, jornais e quaisquer documentos da Revolução paulista de 1932 será entregue ao Instituo Histórico de São Paulo. Só se tirarão da coleção a bandeira de São Paulo em brilhantes e o anel de esmalte com as armas de São Paulo, que estão no armário de exposição de santos. A [sic; bandeira] fica com Mamãe, o anel será para o Carlos Augusto. [Sobrinho, filho de Lourdes].
Tudo quanto seja jóia de enfeite, alfinetes, brilhantes, etc. ficam pros filhos de Lurdes.
A coleção de santos e documentos religiosos em marfim, madeira, alabastro etc. serão doados para o Museu da Cúria Metropolitana de São Paulo, com exclusão do que eles não quiserem, que ficará para o Luiz Saia dar o destino que entender. Também o quadro antigo representando São João Evangelista será para a Cúria e não para a Pinacoteca. Está claro também que não pertence a estas doações a Senhora do Carmo, que Mamãe me deu, a qual ficará na família.
Os objetos de valor etnográfico, ou folclórico, como Xangô, Exu e ferro, ex-votos em madeira, etc. será para o museusinho da Discoteca Publica. Também se pedirá à Oneida Alvarenga que escolha para as coleções da Discoteca todos os discos de calor de estudo, folclórico, nacionais e estrangeiros que lhe interessarem. Os outros ficarão pros filhos de Lurdes.
Em minha biblioteca existe uma coleção muito grade de livros com dedicatória. Serão doados à Biblioteca Municipal, com a obrigação de não se desfazer deles embora duplicatas.
Também existe um grupo numeroso de obras “de luxo”, a maioria com ilustrações, sendo aqui considerado de luxo as edições “numeradas” de tiragem limitada e indicação do papel. Pertencerá também à Biblioteca Municipal. Algumas [sic] deste livros “de luxo” nacionais, a Biblioteca Municipal já possue. Serão estas duplicatas ofertadas à Biblioteca Municipal de Araraquara.
Tenho também alguns livros raros antigos, de forte valor monetário, de Brasiliana, como o Rugendas e o Martius. A Biblioteca Municipal ficará apenas com algum que por acaso ainda não tenha. Mas as duplicatas, com o Rugendas e o Martius pertencerão à Biblioteca, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo.
Você Carlos, retirará da minha biblioteca uma coleção de trezentos livros úteis, dicionários, livros fundamentais de estudo de ciências, uma boa história de artes plásticas, outra da música, alguns clássicos fundamentais das literaturas, Shakespeare, Dante, Aristóteles, Camões, Machado de Assis, enfim uma coleção de trezentos livros de primeira necessidade cultural ao seu critério, que ficará para os filhos de Lurdes, e na posse do Carlos Augusto.
Todo o grande resto será doado à Biblioteca Municipal, inclusive livros de musicologia e artes (5). Sérgio Milliet escolherá com os auxiliares que determinar o que deseja para a Biblioteca Municipal de São Paulo e não constitui duplicata dentro dela. As duplicatas todas e o que ele não quiser será dado à Biblioteca Municipal de Araraquara. O que dentro dela for inútil por constituir duplicata (será fácil saber mandando preliminarmente a relação que o Zé Bento fará) fica para uso da família. De preferência com os filhos de Lurdes.
Não deixo “lembranças”, objetos meus a ninguém. Tenho tão bons e numerosos amigos que tenho medo de numa lista organizada à pressa esquecer alguém. Me esqueci as esculturas de “arte livre” não arroladas acima, meus bustos, obras de Brecheret, de Haarberg etc. irão também para a Pinacoteca.
Eu apenas pediria que tudo fosse com ofício, no interior do qual enumeraria todo o doado, peça por peça, guardando cópia, pra que não desapareça nada por roubo. A tudo o mais, roupas, objetos, e o que eu por acaso tenha esquecido, a família distribuirá de acordo com o seu critério e o critério a que obedeci aqui. Não dôo na por vaidade e toda doação será feita sem alarde. Dôo apenas porque nunca colecionei para mim, mas imaginando me constituir apenas salvaguarda de obras, valores e livros que pertencem ao público, ao meu país, ao pouso que eu gastei e me gastou.

Mário de Andrade

(vire)

(S. Paulo, 22-III-44)
Carlos

Me esqueci duma doação especial que guardei para o Zé Bento, meu secretário. Na secretaria que truxe [sic; pronuncie-se trusse] do Rio, tirada a última gaveta do lado esquerdo dela, em baixo, se puxando o fundo falso, existem dez contos de réis. Esse dinheiro pertence a José Bento Faria Ferraz, assim como um objeto qualquer, de duração permanente, que você escolher. O objeto é pra ele guardar como lembrança da gratidão que lhe devo; o dinheiro é pra ele gastar como e quando bem entender, merecia muito mais, porque uma assistência como a dele não se paga. M.”

NOTAS:

(*) ANDRADE, Mário. In Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. (Org.) Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Editora EDUSP; IEB. 2ª Ed. – 2001 – p. 556;
(1) Embora nem tudo corresponda ao assistemático... sistema ortográfico de Mário, respeitei integralmente, inclusive na grafia de nomes próprios, a cópia que me foi dada pela família dele, logo após sua morte A irmã Lourdes foi sempre “Lurdes”; Luiz Saia = Luís Saia (jamais Sáia, como aparece em alguns lugares da cópia); eu, Oneida, num desrespeito total às nossas assinaturas. No meu caso, com grande ojeriza minha, que desse jeito me sinto outra pessoa, uma estranha;
(2) Naqueles tempos, Clóvis Graciano ensaiara ser editor. Seu primeiro lançamento foi, em 1944, o livro “Escultura Popular Brasileira”, de Luís Saia, seguido, só em 1947, por uma das mais deliciosas histórias para crianças escritas no Brasil: a “Silvia Pética na Liberdade”, de Alfredo Mesquita, com esplêndidas ilustrações de Hilde Weber. As “Edições Gaveta” morreram depressa, nem me lembro se passaram dessas duas obras. Andam por aí algumas explicações do nome da editora, mas se não me engano ele nasceu de um sentido ajuntado por Luís Saia à palavra “gaveta” e usado por quase todo o grupo jovem ligado a nós três (Mário, Saia e eu): Mau humor, desânimo, irritação, espírito preocupado e fechado, “engavetado”. Quase a “fossa” hoje em moda: mas não chegava bem a ser, a “gaveta” ainda tinha uma boa dose de saúde espiritual, faltava-lhe alguma coisa para ser realmente mórbida “Estar de gaveta”, estar “engavetado” atrapalhava a vida, mas não tanto quanto a “fossa”;
(3) Este é um dos evidentes enganos ortográficos da cópia que recebi. Mário dava à contração da preposição “para” com o artigo “a”, a grafia “prá”. Nem me lembro de vê-lo usando o acento grave;
(4) Se não for erro de cópia, o trecho que retifiquei entre colchetes é um dos testemunhos mais fortes da pressa e tensão em que essa carta foi escrita;
(5) Em 1944, a Discoteca Pública Municipal ainda estava começando a grande biblioteca especializada em música, livros sobre Música, Folclore e assuntos afins, que veio a ter depois. Isso talvez explique a doação das obras musicológicas à Biblioteca Municipal. Mas me palpita que outra circunstância, bastante penosa, sirva de melhor explicação: durante sete anos Mário assistira à minha luta para manter um serviço que-ai de mim! ai de nós! – continuou mesmo incompreendido pela quase totalidade dos administradores municipais; vira a derrocada quase total da Discoteca, na primeira gestão do Dr. Prestes Maia, desastre que chegou a fazer com que nós dois pensássemos no recurso salvador de uma venda de todo o acervo ao Ministério da Educação e chegássemos a tomar algumas medidas para isso. Nossa correspondência mostrará tudo, mas tarde.

(Este texto faz parte da apostila de estudos e pesquisas da Biblioteca da Exposição RETALHOS DO MODERNISMO – Resumo da Oficina do livro: ALVARENGA, Oneyda. In Mário de Andrade, um Pouco. Livraria José Olympio Editora – SCET-CSC. São Paulo, 1974 – p. 11/12 - Depoimento de Oneyda Alvarenga; e 31 a 35 – Carta Testamento de Mário de Andrade).
Luiz de Almeida

domingo, 13 de julho de 2008

FRANCISCO ALAMBERT: SÉRGIO MILLIET E MÁRIO PEDROSA

MILLIET - PEDROSA
APROXIMAÇÕES RUMO À AÇÃO SOCIALIZADORA
DA ARTE
Francisco Alambert

I

Em 1949, Sérgio Milliet anotava em seu Diário Crítico um encontro com Mário Pedrosa em Paris. Dizia o seguinte:

“Mário Pedrosa, que encontro chegando do Brasil e já instalado em St. Germain, afirma que aquele velhinho à frente de um copo de vinho no café da esquina, ali se acha há dez anos. Viu-o em 1937, em 1946 igualmente e o torna a ver agora. Pela praça passaram os tanques alemães, diante da igreja um obus caiu. Houve frio e fome e metralhadoras varreram as cercanias, mas o homem ali continua naturalmente, sem nenhuma intenção de heroísmo. Só porque acredita na vida. E há vida nesse lugar, nessa praça, nessa cidade. Não compreende sequer que possa existir outra coisa, não pensa em emigrar, em bater à porta da aventura, em correr atrás da estrela matutina. Por entre suas pálpebras enrugadas brilha uma nesga azul de admirável serenidade”(1).

Mário Pedrosa

Como se vê, Milliet tomou o olhar de Pedrosa e, junto com ele, parte de sua sensibilidade também. Na verdade, faz sua a observação do outro. Em comum, vemos uma atenção para a história vista nas ruas. Histórias de pessoas “comuns” diante da História incomum e bárbara do século que ainda nem entrara em sua metade.
Que espanto teria causado a Pedrosa a imagem daquele homem parado, resistindo em seu lugar, a ponto de lhe chamar a atenção e relatar ao amigo a cena vista? Não conheço resposta nos escritos e memórias de Mário Pedrosa, mas intuo que se espantaria com a imobilidade e a escolha desse velho em ficar, pois Pedrosa nunca assumiu para si tal postura, ele que esteve sempre em movimento, desde os tempos de juventude e militância comunista, depois trotskista, justamente contra a história que aquele parisiense viu resignado e altivo passar diante de sua praça. Mario Pedrosa foi sempre um homem e um crítico de ação. Tampouco Milliet, que foi e veio tantas vezes. E fez desse ir e vir uma prática e uma visão de mundo: um ceticismo peculiar e crítico, um “ato crítico”, como definiu certa vez Antonio Candido, que o singularizou na história de nossa crítica cultural (2).
Também Milliet foi sempre um homem e um crítico de ação, mas sua idéia de ação e de crítica nem sempre coincidiu com a de Mario Pedrosa. Para muitos, eles poderiam até ser vistos como antípodas na história da crítica de arte no Brasil. Mas a “nesga azul de admirável serenidade” do olhar daquele velho resistente parisiense sugere que essa separação não é assim tão óbvia nem muito menos verdadeira. É mesmo decisivo para se compreender a história da crítica de arte, da arte e mesmo dos intelectuais e militantes brasileiros, saber balancear e compreender as posições, as aproximações e distanciamentos destes que foram os dois mais importantes críticos de arte do Brasil desde o Modernismo.
Este ensaio vai aproximar estes dois críticos que são normalmente vistos como opostos, sobretudo a partir do debate sobre o abstracionismo. Creio que essa oposição é discutível e foi claramente criticada pelos próprios autores. Para isso, vou seguir dois textos de Sérgio Milliet comentando aspectos da obra de Mario Pedrosa, mostrando onde se aproximam e onde se afastam.

II

O primeiro deles é também parte do Diário Crítico, e foi escrito em 10 de maio de 1949. Trata-se de um comentário à publicação de Arte, necessidade vital. Ali, Milliet – pensando a partir da posição de quem veio direto da Semana de Arte Moderna e passou por todas as aventuras e desilusões da luta modernista de primeira hora – anota sobre o surgimento do novo crítico: “a literatura estética brasileira é pobre. Os críticos raramente vão além da crônica diária e os nossos historiadores de arte estão mais interessados em geral na história do que na arte”. A observação é preciosa e ainda guarda, em nossa época, muito de seu valor crítico. Mas, no caso, guarda também um óbvio reconhecimento: o livro de Pedrosa é uma grande novidade. Ou seja, Milliet, que já havia estimulado os jovens de 30, que se tornou o “homem-ponte”, na expressão de Antonio Candido, entre a geração modernista e os primeiros acadêmicos “uspianos” (a nova crítica universitária dos chato-boys – na famosa expressão de Oswald de Andrade), também reconheceu Pedrosa como novidade na crítica moderna de arte brasileira, que a bem dizer, naquele momento, só ele mesmo representava.


(Foto adicionada no texto de Francisco Alambert por Luiz de Almeida)

Do livro, ele destaca dois textos: a conferência sobre Käthe Kollwitz e o ensaio sobre Calder. Milliet não poderia saber, mas de fato escolheu dois dos textos mais importantes do crítico, porque o ensaio sobre Kollwitz (uma conferência apresentada no CAM em 1933) é o primeiro estudo propriamente marxista de arte entre nós (e creio que era uma novidade em toda a América então)(3). E é justamente o que significa esse “marxismo” que Milliet irá discutir (o que naquela altura só ele mesmo poderia fazer, pois já havia estudado Marx quando adolescente em Genebra e Paris, iniciando uma intensa e tensa relação com o materialismo, o marxismo, o socialismo, que ele sempre defendeu afinal, como se pode ver em várias páginas de seu Diário Crítico). O texto sobre Calder é o primeiro de uma série que como se sabe irá definitivamente comprovar a excelência crítica de Pedrosa. Calder talvez tenha sido seu artista preferido e a quem dedicou uma reflexão mais aprofundada. Pode-se mesmo dizer, sem o perigo do exagero, que Pedrosa “descobre” Calder para o mundo e se usa disso para auxiliar a estabelecer sua própria teoria da arte moderna. Precocemente, Milliet acertou em cheio e, de uma certa forma, reconheceu seu sucessor.
Milliet, que freqüentava meio a distância as reuniões do pessoal do CAM, deve ter tido contato ou notícia dessa conferência na época. De fato, isso é dado a entender no próprio texto, quando começa dizendo que não acredita que o ensaio, naquele momento em que é publicado (1949), “reflita com fidelidade o pensamento atual do autor”. O título original da conferência do CAM era “Käthe Kollvitz e o Seu Modo Vermelho de Perceber a Vida”, depois mudado quando foi publicado em capítulos no jornal O Homem Livre e no livro citado para o definitivo “As tendências sociais da arte e Käthe Kollwitz”. Na opinião de Milliet, o texto é “demasiado ortodoxo no seu marxismo, ao mesmo tempo que um tanto quanto esquemático”. “Ortodoxia” e “esquematismo” são dois conceitos caríssimos à crítica millietiana. Veremos como esses dois temas irão retornar quando do debate sobre o abstracionismo.
Ainda assim, não questiona os dois grandes méritos de Pedrosa naquele momento: introduziu no Brasil a obra da grande gravadora e sobretudo foi o responsável por “iniciar em nossa terra uma crítica de fundo sociológico”. Milliet destaca a presença do pensamento marxista na crítica de Pedrosa, mas ressalta que ele foi aprofundado pela leitura do estudo de “Ernesto Grosse acerca das origens do fenômeno artístico”. Ou seja, para ele o marxismo não poderia ser, por si só, também uma teoria da arte. Isso é a primeira noção que irá unir os dois antípodas aparentes: o crítico cético (Milliet) e o engajado Pedrosa – pois este também, ao longo de sua produção, irá somar à formação marxista fundamental, usada com criatividade, idéias e obras vindas de caminhos completamente diversos (como por exemplo em seus trabalhos sobre forma inspirados na Gestalt). Sem nunca se tornar cético, como o ceticismo particular de Milliet, Pedrosa acabaria por concordar com a necessidade de, no campo da arte, preencher as lacunas da base materialista de formas particulares de entendimento estético que não cabiam na teoria. Pedrosa acabaria por se aproximar assim de Milliet.
Continuando seu comentário, Milliet toma uma citação de Wagner, usada por Pedrosa, em que o músico, no seu grande momento romântico-revolucionário, em pleno ano explosivo de 1848, afirmava que à sua época, a arte dos gregos “era conservadora porque se apresentava à consciência pública como uma expressão válida e adequada. Entre nós, a arte verdadeira é revolucionária, pois só existe em oposição aos valores geralmente admitidos”. Essa idéia, diga-se de passagem, será perseguida por Pedrosa ao longo de sua trajetória crítica. Em um texto bastante posterior ao período que estamos tratando, o crítico explicou melhor sua crítica ao ideal burguês conservador da idealização do passado grego: “o ‘milagre grego’ em arte é ideologia das burguesias ascendentes da Europa (italianas) e que atingiu também o próprio Karl Marx, inexperiente nessas matérias e altamente desconhecedor das descobertas arqueológicas e antropológicas do fim do século”(4). De um ponto de vista marxista crítico, essa idéia é compreensível e necessária, mas para um não marxista, ela provavelmente não faz sentido. Entretanto, Milliet concorda e interpreta a citação de Wagner com uma pergunta: “mas quererá dizer isso que a arte não revolucionária de nossa época seja menos social do que participante?”. Ou seja, a idéia do “social” também está no centro de suas preocupações.
Para o Pedrosa daquele momento, a resposta seria afirmativa, só a arte participante faria sentido. E mais: “a função social da arte decaiu. Abria-se a era do culto impessoal da forma”. Para Milliet era aqui que se manifestava o primeiro engano. Pois do seu ponto de vista, a função social da arte é permanente mas muda de sentido: ora é positiva, ora negativa. A arte positiva agrega indivíduos em “certos valores essenciais do grupo”. Já a negativa, é um “laço de resistência para as minorias ultrapassadas mas que ainda detêm o poder ou gozam de suficiente prestígio para manter-se mais ou menos coesas ante a pressão das maiorias”(5). A arte negativa é uma resistência das minorias contra a ditadura das maiorias. Aqui Milliet não pode resistir a deixar escapar uma ponta de aristocratismo (que ele compartilhava com Mário de Andrade), dizendo que o “requinte formal” é a segurança e a resistência desse grupo, através do qual “se fortalecem certas elites, como através de determinadas normas de vida se reconhecem e se unem os aristocratas”(6). Mas o importante no caso é que, em sua visão, o requinte formal não é um mero gesto vazio de significado (como na arte pela arte), mas é necessário à resistência e garante a mudança social, diminui a pressão das maiorias, conservadoras, e abre as portas para o novo surgir e se afirmar como uma nova força.
Nesse momento, a questão passa a ser então o conceito de “social” e o papel da arte na transformação de si mesma e do mundo de que é parte. Mário Pedrosa falava e militava em prol de uma arte socializadora. Milliet problematiza a questão e, em conseqüência daquela teoria do requinte formal como resistência, introduz a idéia de qualidade formal. Não importa tanto, e por princípio, o aspecto socializador da obra de arte mas sim, “do ponto de vista estético”, o que faz uma “obra de arte são suas qualidades formais. O que faz que a apreciemos ou não, é que pode ser a elevação do sentimento ou a função socializadora, segundo nossa posição na sociedade” (note-se que “qualidades formais” são diferentes de apreciação). Aqui, eis Milliet defendendo um peculiar “formalismo” contra Pedrosa, que depois será acusado a vida toda (injustamente) de ser justamente formalista! E embaralhando ainda mais os estereótipos, a certa altura, Milliet critica Pedrosa por haver em seu trabalho “insuficiente análise técnica”.
Já o ensaio sobre Calder deixa nosso crítico maravilhado. Diz tratar-se de um texto “amadurecido, sereno e penetrante”. Fica especialmente interessado na aproximação que Pedrosa estabelece entre Calder e os artistas chineses, na medida em que, como eles, o escultor consegue sugerir os volumes apenas pelo vazio que se define pelos contornos e pelas linhas.
Mesmo assim, continua apontando restrições de ordem técnica e histórica. Cobra de Pedrosa o aprofundamento na comparação de uma maneira interessante. Diz que a idéia de “desequilíbrio assimétrico” deve ser desenvolvida e questionada. Pois na interpretação de Pedrosa, ela serve para designar a escultura de Calder e ao mesmo tempo a substituição da figura humana por uma árvore (no exemplo usado pelo crítico pernambucano). A propósito disso, se sai com uma máxima bem sua, e que pode ajudar a localizá-lo no debate sobre a figuração-abstração de que tomaram parte ambos os críticos, geralmente vistos em posições opostas: “E não consistiu sempre a composição excelente em equilibrar planos e volumes desiguais mediante o estudo das proporções eufóricas? No fundo a figura pouco importa; o que vale são as linhas, reproduzam elas um homem ou uma árvore, ou formas imaginárias”.
Está em questão, portanto, a necessidade de uma pesquisa em torno das leis da forma (trabalho desenvolvido por Pedrosa, como se sabe, desde seus estudos sobre a Gestalt, por exemplo). Ora, se colocarmos essa mesma afirmação dentro do debate sobre a abstração, então poderemos ver que a posição de Milliet era complexa e um tanto dúbia, pois essa idéia desmente a necessidade da presença da figura para a definição da arte que nos “interessava” (pois essa era a questão central do debate), reafirmando uma vez mais a obsessão millietiana pelo rigor formal em detrimento do assunto.

III

(Sérgio Milliet dircursa no Congresso Brasileiro de Escritores - São Paulo, 1945 - Foto adicionada no texto de Francisco Alambert por Luiz de Almeida)

E é nessa mesma toada que, dois anos depois (já em 1951, ano da primeira Bienal de São Paulo, projeto que ambos irão abraçar), Milliet retoma novamente o comentário de um estudo de Mario Pedrosa, agora tratando de seu belo estudo sobre o livro de Roger Fry a respeito da questão da forma e da personalidade(7), texto que acabara de ser publicado pela revista Forma: “O que me interessa nessas páginas de Mario Pedrosa é a afirmação de que no campo mesmo da psicologia da arte ‘decidem, na apreciação da obra, as suas qualidades plásticas e formais’. O resto nada tem a ver com o fenômeno estético”.
Nesse momento, na visão de Milliet, estava claro que ele e Pedrosa, antes de estarem distantes, estavam muito próximos quanto ao que compreendiam como prevalência do formal como tema e conteúdo mesmo da obra de arte, compreendida como fenômeno estético (pois ambos eram capazes de reconhecer o interesse da arte como assunto e tema do ponto de vista da sociologia, da história, da psicologia, etc.).
Agora a “polêmica sobre arte abstrata” é encarada diretamente e Milliet traz Pedrosa para seu lado. E reafirma seu ponto de vista diante da questão da preeminência do formal sobre o assunto ou diante da representação imitativa. Dá como exemplo o “realismo socialista”, que curiosamente ele diz não combater “em tese”. Pois ele até poderia ter valor e vingar “se as obras de sua produção se assimilarem pelas qualidades estéticas que são as plásticas e formais”, se for, como certas obras de Jorge Amado que ele cita como exemplo, inteligentes, e não, como outras do mesmo escritor, meramente infantis “porque desperdiçando os valores indiscutíveis de uma bela idéia”. A “bela idéia” aqui é a chave, junto com a execução correta. Aqui, o cético Milliet confessa ser capaz de apreciar até mesmo o realismo socialista!
Se alinhando com o materialismo marxista de Pedrosa, reitera que a “arte se condiciona à estrutura econômica e portanto social. Mas a que reflete não é a que procura difundir a doutrina marxista. Esta se difunde apesar de seus artistas e por outros motivos que não a arte”. E agora, aquela teoria da história que marcou a visão de Milliet, já esboçada no outro comentário a Pedrosa e claramente inspirada num misto de marxismo e funcionalismo sociológico, volta a ser explicada com clareza:
“(...) a arte a serviço de uma doutrina só se justifica quando as velhas doutrinas já se acham destruídas. Então ela surge naturalmente a serviço da reconstrução e exprime o que uma grande maioria do povo sente e pensa. Antes desse momento ‘psicológico’, a arte social tem que ajudar a destruir, pela pintura trágica ou sarcástica da sociedade. Não lhe cabe ‘doutrinar’. Compete-lhe apenas ‘mostrar’”. Mas esse “mostrar”, função da arte engajada na destruição definitiva do passado ou na reconstrução programática do presente, só será atingido “se tiver as qualidades estéticas que fazem da literatice literatura, ou da tolice colorida uma obra de arte”. As proximidades e diferenças entre os dois críticos vão ficando mais claras, e as famosas voltas e viravoltas do raciocínio millietiano, tão típicas de seu ensaísmo de inspiração francesa(8), permanecem e acentuam esse jogo. Agora, surge uma reviravolta e o autor passa a expor que lhe parece ser o estado da questão em sua época:
“Na situação atual da arte, dois caminhos se abrem para o pintor: o da pintura pela pintura – abstracionismo – ou o do realismo. Vejo no abstracionismo uma evasão sem eco, uma pintura morta, portanto, embora com algum encanto e fantasia. Vejo no realismo construído à luz das lições do cubismo (composição) e do expressionismo, o caminho mais viável. Conquanto não se esqueça de que a arte só vale pelas suas qualidades estéticas...”.
No meu modo de ver, creio que se esclarece uma posição: o que Milliet chamou de “abstracionismo” aqui, ou seja, algo como a pintura pela pintura, está muito próximo do principal inimigo combatido pelo construtivismo de Pedrosa, que este detectou na voga internacional do tachismo. Milliet deixa claro que desconfia do realismo socialista mas preza a arte socializadora, que não se prende à figuração, mas reforça a seriedade na pesquisa e na composição estética. Até ai, Pedrosa assinaria embaixo. A questão é que o crítico paulistano via no abstracionismo, que Pedrosa defendia, os mesmos defeitos que este via no tachismo que combatia.
Ambos buscavam o “caminho mais viável”. Mas para que? Em que sentido? Para Mario Pedrosa, que levou essa questão adiante, para o “exercício experimental da liberdade”, para trazer ao mundo a liberdade conquistada pela arte em seu processo de superação e emancipação. Essa liberdade traria a sensibilidade necessária para um novo tempo, um novo homem que surgiria com a revolução socialista da qual a arte moderna era par(9).
Mas e para Milliet? Creio que nenhuma dessas idéias lhe seria estranha, mas seu ceticismo peculiar, porque engajado, preferia reter a euforia e desconfiar criticamente dessa explosão de otimismo e pregação que foi promessa de parte da arte moderna. Porém, tão engajado quanto Pedrosa, estava pronto a negar tudo o que lhe parecesse mistificação e engano, tudo o que pudesse retirar a arte e o homem daquele caminho de destruição/reconstrução do passado e do presente que ele acreditava ser função da melhor arte.
Para Pedrosa, voltando à idéia do primeiro texto de Milliet, só a arte negativa faria sentido. Para Milliet, que pensava o Brasil e as possibilidades de transformação aqui em outra chave, a arte deveria ser a um só tempo negativa e positiva. Construir mudando e mudar construindo. No fundo, esses dois críticos, o cético e o trotskista, queriam a mesma coisa: que a arte fizesse diferença no mundo que eles tanto esperavam.

NOTAS:

(1) – MILLIET, Sérgio. Diário Crítico. São Paulo: Martins/UDUSP, 1981, v. VI, p. 369. (Salvo contrário, as citações do autor a seguir remetem a esse mesmo texto de seu Diário Crítico;
(2) – CANDIDO, A. “O Ato Crítico”. In A Educação Pela Noite. São Paulo: Ática, 1986. O mesmo texto, com ligeiras manifestações, foi publicado como introdução ao primeiro volume dos Diários de Milliet. Cf. “Sérgio Milliet, o crítico”. In: MILLIET, Sérgio. Diário Crítico, v.1. São Paulo: Martins/EDUSP, 1981;
(3) – Recentemente publicado em ARANTES, Otília B. F. (Org.). Política das Artes. São Paulo: EDUSP, 1995;
(4) – Cf. “A Bienal de cá para lá”. In: ARANTES, Otília B. F. (Org.). Política das Artes. Op. Cit., p. 255, n.6. Sobre Marx e arte grega, ver: MARX, K. “Introdução”. In Para a crítica da economia política. São Paulo: Editora Abril, 1975 (Col. Os Pensadores), PP. 130131;
(5) – Aqui se manifesta um certo “antropologismo” que será marcante na composição teórica de Milliet, baseado numa dialética entre o grupo dominante e o marginal, fundamental para a tese desenvolvida em Marginalidade da Arte Moderna. Cf. “Marginalidade da Arte Moderna”. In: Pintura quase sempre. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1944;
(6) – Ver o irônico e o ambíguo aos pendores progressistas da “aristocracia paulista” em ANDRADE, M. “O Movimento Modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1974, 5.ed.;
(7) – MILLIET, Sérgio. Diário Crítico. São Paulo: Martins:EDUSP, 1982, v.VIII, PP. 144-145. As citações do autor a seguir vêm deste texto;
(8) Sobre esse assunto, ver, além do ensaio citado de Antonio Candido: CAMPOS, Regina M. Salgado. Ceticismo e responsabilidade: Gide e Montaigne na obra crítica de Sérgio Milliet. São Paulo: Anna Blume, 1996; Gonçalves, Lisberth Rebolo. Sérgio Milliet, Crítico de Arte. São Paulo: EDUSP, 1992; ALAMBERT, Francisco C. Um melancólico no auge do modernismo: Sérgio Milliet. São Paulo: FFLCH-USP, dissertação de mestrado, mimeo, 1991. SANTANA, Naum Simão de. A razão dos efeitos. São Paulo: Instituto de Artes da UNESP, dissertação de mestrado, mimeo, 2003;
(9) – Cf. ARANTES, Otília B. F. Mário Pedrosa: Itinerário Crítico. São Paulo: Scritta editorial, 1991.

Francisco Alambert. Professor de História da Cultura e História Social da Arte no Departamento de História da USP e crítico de arte.
Texto Publicado em Gonçalves, Lisbeth Rebollo (org.). Sérgio Milliet - 100 anos: trajetória, crítica e ação cultural. São Paulo: ABCA/ Imprensa Oficial do Estado, 2004. ISBN 85-7060-328-2, pp. 139-148.