segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O "PERU DE NATAL - MÁRIO DE ANDRADE"

PERU DE NATAL
Mário de Andrade
(Mantida a grafia original)


Foto reprodução

  
    O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.
    Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
    Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.
    Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":
    - Bom, no Natal, quero comer peru.
    Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.
    - Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...
    - Meu filho, não fale assim...
    - Pois falo, pronto!
    E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
    Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
    Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:
    - É louco mesmo!...
    Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.
    - Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!
    Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.
    - Eu que sirvo!
    "É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
    - Se lembre de seus manos, Juca!
    Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.
    - Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
    Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
    Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.
    Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.
    - Só falta seu pai...
    Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
    - É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.
    - E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.
    Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
    Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
    A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.
    Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

(Versão definitiva, agosto, 1938-1942).

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FONTE:
- Andrade, Mário de. Contos Novos. Obras Completas de Mário de Andrade, Vol. XVII. Livraria Martins Editora S. A. – São Paulo, 1956 - pp. 95-103.

Na Sequência:
- Anexo: Análises do texto. (*)
(*) O Anexo não foi postado por ser muito extenso. Quem tiver interesse nas Análises do Texto “Peru de Natal”, basta enviar solicitação através do "Entre em Contato".

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

GUILHERME DE ALMEIDA ESCREVE EUCLIDES DA CUNHA

A PAINEIRA DE
EUCLIDES DE CUNHA
Autor: Guilherme de Almeida, em 1946.


Foto reprodução de Guilherme de Almeida e Euclides da Cunha


PREFAÇÃO INEXCEDÍVEL (Luiz de Almeida)

Dia 18 de Dezembro de 1906, Euclides da Cunha tomava posse da Cadeira n.º 7 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo Valentim Magalhães e foi recebido pelo Acadêmico Sílvio Romero: faz 103 anos. Em 1906, Guilherme de Almeida tinha apenas 16 anos e cursava o 5º ano no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos Irmãos Maristas, em São Paulo.

No dia 15 de Agosto de 1909, no Rio de Janeiro, Euclides foi assassinado pelo amante de sua esposa Ana, Dilermando de Assis. Nesse mesmo ano Guilherme de Almeida, sob o pseudônimo de “Guedal”, via seu primeiro poema publicado: “O Eucalyptus”, no periódico “11 de Agosto” da Faculdade de Direito de S. Paulo. Esse poema é uma exaltação condoreira à árvore que dera nova fisionomia à paisagem caipira das cidades onde passou sua infância: Campinas, Rio Claro, Limeira e Araras. Coincidência ou não, quando das comemorações do 37º aniversário da morte de Euclides da Cunha, em 1946, denominada “Semana Euclideana”, Guilherme de Almeida, que já residia na Casa da Colina, Rua Macapá – São Paulo, iniciava a sua colaboração no Diário de S. Paulo, com crônicas intituladas: “Ontem, Hoje e Amanhã”. E foi nesse jornal que Guilherme publica a crônica com o título: “A PAINEIRA DE EUCLIDES”. Guilherme de Almeida volta escrever sobre a árvore, agora, uma determina e exclusiva árvore: “a paineira”, de Euclides da Cunha. Essa crônica foi também editada no livro: “COMEMORAÇÕES EUCLEDEANAS em S. JOSÉ DO RIO PARDO”, Editado pelo Departamento Estadual de Informações, em 1946, impresso na Indústria Gráfica José Magalhães Ltda, São Paulo. E foi nesse livro que encontrei a referida crônica que descrevo na seqüência: “não para lembrar o aniversário da morte do Euclides da Cunha, mas em comemoração aos 103 anos, neste 18 de Dezembro de 2009, da posse do autor de Os Sertões na Academia Brasileira de Letras”.

Como é do conhecimento de todos, a Academia tem atualmente muitos imortais ilustres (Ivan Junqueira, Alfredo Bosi, Cony, Suassuma, João Ubaldo, Ligia Fagundes Telles, por exemplo) e outros nem tanto. Também já teve outros “nem tanto”, como também teve outros “ilustríssimos” imortalizados - e que não foram escolhidos por serem diplomatas, políticos ou indicados por políticos ou por partidos políticos. Eram literatos de verdade. (Não vou nem tocar no assunto dos grandes literatos esquecidos e injustiçados que não foram nem indicados). Só para relembrar (que tristeza!): a mesma Academia do Machado de Assis que imortalizou, por exemplo: Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Cyro dos Anjos, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Ribeiro Couto, Celso Furtado, Antonio Callado (acho que está boa essa relação, apesar de que eu gostaria de mencionar muitos outros), também imortalizou: Getulio Vargas, Marco Maciel e um, Meu Deus, vive aprontando em Brasília: José Sarney. É isso mesmo, José Sarney. É. Acho melhor não continuar, pois iniciei este prefácio falando dos Ilustríssimos Acadêmicos: “Euclides de Cunha” e “Guilherme de Almeida” e termino desastrosa e melancolicamente mencionando Getulio, Maciel e Sarney. Peço desculpas ao amigo leitor.

No entanto, o mais importante é a crônica do Guilherme de Almeida. Como sempre, os textos guilherminos (já encontrei quem prefere dizer: guilherminianos) fazem com que o leitor chegue ao êxtase, pois são todos suculentos, de forma e contexto insuperáveis, divinos, eternos. E, para não desfigurar a crônica, foi conservada a ortografia original, que é um dos objetivos do “RETALHOS DO MODERNISMO”: conforme as possibilidades, apresentar os textos inéditos sem desfigurá-los. Sendo assim:


A PAINEIRA DE EUCLIDES

Guilherme de Almeida

Reprodução do livro: Comemorações Euclideanas em S. José do Rio Pardo - Edição do Departamento Estadual de Informações - São Paulo, 1946 - p. 83.

Sol – céu limpo – 37.º aniversario da morte de Euclides da Cunha: o dia é oiro sobre azul tarjado de luto.
É a coroação da Semana Euclideana.
Vou pela rua regada, que leva à ponte. Desço os degraus altos de tijolo, até a margem ajardinada, mansa e verde na frescura das sombras. O rio corre espumado pelas pedras pretas e cortado de yoles que remam braços morenos folgando no feriado. Nos bancos, ao longo da beira folhuda, os pares de amor olham, perdidos, o liquido chamalote do remanso. Pela ponte, entre a cidade de terracota e o Cristo Redentor de cimento claro, passa o brilho de metal e verniz de um auto silencioso.

Quietude.

Atrás da redoma religiosa que guarda a reliquia – o santuario de concreto e vidro, emborcado sobre o sagrado barraco de zinco e sarrafos – uma velha paineira braceja. Já estoiram os gomos das suas cápsulas, soltando ao ar d’oirado o vôo nupcial dos flocos alvos e leves. Chego-me bem ao seu tronco exageradamente grosso, emergindo, atlético, dos tentáculos do forte sistema radicular do polvo. E olho para cima. Não é um tronco de árvore: é um tronco humano. Uma cariátide hercule a que se alça, rigorosamente anatômica, em músculos distendidos; e, lá do alto, contra todas as leis vegetais, baixa de-repente sobre a cabana histórica os seus braços olímpicos empolados de bíceps brutos de bronze.

Aquelas outras paineiras, ali em-cima, à esquerda da ponte, são árvores. Esta, aqui em-baixo, é gente. Aquelas, vegetais, sobem pedindo bênçãos; esta, humana, baixa abençoando...

No seu simbólico e estupendo antropomorfismo, a predestinada paineira de Euclides é um encontro de dois dentre os três reinos da natureza. À sua sombra, um quarto reino se perpetrou: o espiritual.

FONTE:
- Comemorações Euclideanas em S. José do Rio Pardo – Edição do Departamento Estadual de Informações, São Paulo, 1946 – pp. 23/27. Texto original: editado no Diário de S. Paulo.