quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

OBRA PRIMA DE GUILHERME DE ALMEIDA

Texto de Guilherme de Almeida mostra que nosso grande poeta não esteve com sua atuação somente voltada para a Literatura - as artes cênicas estiveram presentes nas suas pesquisas e estudos, como podemos verificar através do texto editado a seguir, uma verdadeira "obra prima" do poeta para os anais da Literatura Paulista e Brasileira.




“AGORA ACREDITO NO HUMOUR DE CARLITO”



‘Luzes da Cidade’ é:


“perfeita criação que destrói todas as coisas mais ou menos sérias".



A obra-prima de Charlie Chaplin e, talvez, do cinema – obriga-me a acreditar numa coisa que eu, há tempos, tinha publicamente negado: o humour de Carlito. Agora acredito. E, porque vejo no humour a suprema estilização do aperfeiçoamento humano, neste film, que é todo humour, tenho também que ver, coerentemente, a mais perfeita criação do celulóide.
Eu tenho uma teoria, talvez minha, do humour. Ele é a última etapa, o mais alto grau da sabedoria. Esta assim se desenvolve: - primeiro, é a alegria da curiosidade; depois, é a dor de aprender; em seguida, é o remorso de saber; e, afinal, é o sorriso para esquecer. E, pois que o esquecimento é uma destruição, há, no fundo de todo humour, um permanente sentimento de melancolia ao lado de uma constante idéia de aniquilamento.
Ora, City Ligts vem bem marcado daquela shakespeariana “melancholy of mine own, compounded of many simples, extracted from many subjects”. Sim: “of mine own”, Carlito pode bem dizer isso: é sua, toda sua e só sua essa melancolia, pois o film é seu, todo seu e só seu. É sua a produção, seu argumento, sua a direção, sua a interpretação, seu o arranjo musical. É a primeira, absoluta, completa afirmação pessoal que o cinema produz.
Profundamente melancólico como o humour, o film de Carlito é também, como o humour, profundamente destruidor. Destrói como só o humour sabe destruir: pelo ridículo, pela deformação, pelo processo da redução ad absurdum, de Novalis, e sempre como “o sorriso na neblina”, sempre com “die lachende Traene im Auge”. Destrói todas as coisas mais ou menos sérias em que alguns homens ainda acreditam. Destrói a sisudez das estátuas e das comemorações cívicas, com aquela “seqüência” inicial em que o pequeno vagabundo da grade cidade aparece como uma triste mancha humana escorrendo por toda a estrutura do monumento. Destrói o patético do suicídio, em todo aquele episódio burlesco em que o little tramp salva a vida ao milionário blasé. Destrói o pseudo-encanto das reuniões sociais, quando descreve ironicamente aquela soirée mundana em que Carlito engole um apito. Destrói o boxe, o “nobre sport”, com a calma análise e exposição de todos os ridículos que podem caber num ringue. Destrói a polícia, os vertiginosos dramas da Gangland, com os grotescos todos do episódio do roubo e da injusta prisão do triste herói. Destrói o “sublime sentimento da amizade”, mostrando aquele neurastênico e generoso senhor que, só quando está bêbado, fora de si, é que sabe ser amigo de um pobre diabo. Destrói o amor, mostrando como ele nada mais é do que uma cegueira, um inconsciência, uma inocência comovedora. Destrói o frouxo sucesso do cinema falado, negando a necessidade de qualquer voz humana no film e substituindo-a vantajosamente, como nos desenhos animados, pelo comentário cômico-musical (os discursos inaugurais da primeira cena; o gramofone mudo no quarto da florista cega; o cantor que não canta na reunião social, etc.). Destrói o próprio cinema, quer contrariando-o, tecnicamente e, nos processos da continuity, que Charles Chaplin não reconhece (ele não se preocupa com a nuance entre as cenas que emenda, esbate e a amacia a ação); quer caricaturando todo o hokum das situações habituais, o poncif, os lugares comuns de todas as fitas...
E mais coisas destruiria também, se não fossem coisas já tão destruídas por si mesmas...




GUILHERME DE ALMEIDA



- Matéria publicada em 7/7/31 no O Estado de São Paulo – “Luzes da Cidade” (City Lights). Direção: Charlie Chaplin. Com Chalie Chaplin, Virgínia Cherril, Harry Myers, Florence Lee, Allan Garcia, Hank Mann, Henry Bergman. EUA – 1931.
- A atual matéria foi publicada no Suplemento Cultura do O Estado de São Paulo – 30/12/1995, Nº 787 – Ano 16 – Pág. Q1 – Matéria “Cinematógrafo de Almeida volta a funcionar” – Autor: Frederico O. Pessoa de Barros (Especial para o Estado).

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