domingo, 2 de março de 2008

A EXPERIÊNCIA "FUTURISTA" SEGUNDO MÁRIO DE ANDRADE

MÁRIO DE ANDRADE E SUA SÍNTESE DO QUE FOI A “EXPERIÊNCIA FUTURISTA” BRASILEIRA.


O “Retalhos do Modernismo” conseguiu cópia do artiguete enviado por Mário de Andrade a Joaquim Inojosa, escrito três anos após a realização da Semana de Arte Moderna realizada no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 11 a 18 de fevereiro de 1922, onde Mário faz uma síntese do que foi a “experiência futurista” paulista e brasileira, salientando o sentindo nacionalista da “revolução artística” parida pela Semana de 22. Na ocasião, Joaquim Inojosa, o maior propagador das idéias modernistas no Nordeste Brasileiro, publicou o artiguete no Jornal do Comércio do Recife, em 24 de maio de 1925, com o título: “MODERNISMO EM AÇÃO”.
Atendendo aos objetivos do Projeto “Retalhos do Modernismo”, o referido artiguete foi inserido no Acervo da Exposição e: "para que haja possibilidade aos que não têm acesso à exposição Retalhos do Modernismo e sim ao Blog, edito o referido artiguete na íntegra".
Luiz de Almeida

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MODERNISMO EM AÇÃO

Todos os movimentos artísticos brasileiros têm sido agora de imitação. O Modernismo também. Se desde o princípio da guerra uma tendência modernizante já se denunciava aqui em São Paulo, principalmente com o aparecimento de Anita Malfatti (pintora) e de Brecheret (escultor), essa tendência no fim da guerra era um verdadeiro movimento, consciente de si mesmo, com franqueza já constituído no que se chama com certa impropriedade de igrejinha de elogio mútuo. Não acham impróprio? Pois é. É natural que um tangará não procure para companheiro de vida chupa-méis ou jundiaís. Procura tangarás. Que nos importava agora um ladainheiro que todas as manhãs começava com o seu: Santo Olavo Bilac rogai por nós? Fomos buscando pelas ruas os tipos da mesma família. Família de estourados, não? Ao menos é o que se diz por aí. Em 1919 já os estourados se sentiam bem fortinhos, graças a Deus. O muque crescia com o aumento do grupo e com os estudos. E o “box” principiou de verdade. Foi uma pândega. Um cortejo de exageros. Nossos e dos nossos inimigos. Apesar de tudo, essas tolices são bonitas. Principalmente porque tem muita sinceridade nelas. A gente se dá, se entrega a uma idéia e lá vai que nem cego, mundo fora até à morte ou à vitória. Vencemos? Me parece que sim. Ao menos este pensamento entrou na cabeça de todos os artistas da terra. Carece fazer qualquer coisa de novo.
O novo!... Esse foi o pensamento estético que nos agitou aqui durante a guerra. Onde estava o novo – lá? Lá fomos – que macacos! – buscar o novo nas Europas. E imitamos os “ismos” europeus. Duas coisas diferenciavam a nossa imitação das anteriores: imitávamos o presente não-orientação já fundada fazia muito; e, tal e qual o Romantismo, seguíamos uma tendência universal. Às vezes eu mesmo me revolto contra isso de chamar o nosso primitivo movimento modernizante de imitação. No seguir o estádio espiritual-universal da sua pátria época, tem muito mais uma necessidade fatal que uma simples macaqueação. E tanto é que se deu conosco essa coisa bonita de nós descobrirmos novidades que já estavam descobertas por artistas ainda ignorados por nós. Eu quando pude soletrar o alemão fui encontrar dentro dele as tendências estéticas da Paulicéia Desvairada escrita num tempo em que nem declinava “die Mutter”. Hoje sei dizer que essa palavra escura quer dizer a velha da gente e que os alemães são todos expressionismos e outros ismos europeus. Rapazes, a Europa é o nosso oriente. Dissolve!
Esse novo nós o levamos para o Rio de Janeiro no finzinho de 1921. Paulicéia foi lida por grupos mais adiantados de lá. E logo as amizades interestaduais se estabeleceram. E quando no ano seguinte Graça Aranha chegou da Europa conseguiu cimentar essa união com o entusiasmo e a natural grandeza que possui. Como o grupo modernista de verdade ainda fosse o de São Paulo, aqui ele organizou a famosa Semana de Arte Moderna em que fomos vaiados. Eu não digo isso com orgulho, não. Verifico uma verdade: fomos vaiados. E merecíamos. Nunca vi embrulhada tal. Todas aquelas manifestações diferentes sem uma explicação que lhes designasse o fundamento comum, naturalmente havia de azaranzar o público. Foi o que aconteceu... E fomos vaiados.
Eis em síntese o que foi a experiência “futurista” brasileira. Muita sinceridade, um entusiasmo sublime, uma vitalidade maravilhosa de mata virgem aí do norte e muita ilusão boba, muito idealismo coió, sem eficiência, muita temeridade sem coragem, muito pedantismo. Nada disso, nem mesmo as bonitezas apontadas justificam e honram um movimento coletivo. O que significa e vai honrar nosso movimento é a sua fase atual, evolução de certas tendências obscuras ainda naquele tempo porém já existentes nas primeiras obras que criamos. A principal delas é fazer uma arte de ação. Pode-se dizer que para nenhum modernista a arte é considerada como criadora de Beleza. Tem beleza em nossas obras, porém ela é apenas um meio de interessar e de chamar atenção para coisas mais úteis e práticas. E se não caímos no diletantismo essa arte por assim falar interessada que estamos criando é que vai determinar pela primeira vez enfim a psicologia integral do brasileiro. Abaixo a contemplação! Abaixo os poemas patrióticos que não reconheçam os defeitos da Pátria! O Brasil não carece de bonitezas. Faz poucos dias eu falava num discurso que “na porta do Brasil estava um papel em português errado: ‘- Precisa brasileiros’”. É isso mesmo. O Brasil tem tudo: secas cearenses, praga do café, lepra, política, barbeiro, patriotas(?), mulheres bonitas, baía da Guanabara, revoluções que não conseguem nunca vencer e o Amazonas. Tem até poetas, meu Deus! Só o que o Brasil não tem é brasileiros. Isso, nem lanterna de Diógenes encontra. Mas um sujeito erra na metrificação para fazer um soneto sobre a lanterna de Diógenes, isso possui aos milhares. Resolução: o único meio de sermos dignos é com o sacrifício de nós mesmos. E o sacrifício imediatamente começou. A nossa norma agora é de qualquer forma agir dentro naturalmente do nosso destino de artistas. Vamos ver no que isso dá.
Dentro dessa norma de arte-ação é que estamos construindo a nossa obra. Se lembram de que no princípio deste artigo falei na igrejinha de elogio mútuo? Pois acabou. Falei em imitação. Acabou também. Não tem dadaístas nem surrealistas nem futuristas nem expressionistas no Brasil. É possível que algumas vezes uma ou outra manifestação se pareça mais ou menos com o que se faz pela Europa, mas é simples coincidência de objetivos. Estamos com o espírito inteiramente voltado para o Brasil. E cada um realiza o Brasil segundo a própria observação. Assuntamos, matutamos e realizamos. O nosso atual movimento se caracteriza sobretudo nisto: abandonou o idealismo e é prático. Não se andam pregando coisas das bonitas, faz-se qualquer coisa. Arte nacionalizante, arte sexual, arte de pagodeira. Não se espantam. Arte de pândega. Brincamos com a arte. Pois não vale mais a pena brincar do que emprestar uma corneta de um museu e andar gritando: “Pátria, latejo em ti?” Vale. O brinquedo sempre socializa muito mais que uma sessão solene. E na liberdade do brinquedo se determinam inconscientemente muitas características de uma raça. Poder-se-ia escrever um livro sobre a psicologia das raças estudando-lhes unicamente os brinquedos nacionais.
Por isso nós também brincamos. Alegria nunca fez mal pra ninguém contanto que não se faça dela um preconceito. Oswald de Andrade, mesmo dentro dessa formidável pândega que é João Miramar tem páginas melancólicas. É na variabilidade surpreendida das nossas reações psicológicas que buscamos surpreender o brasileiro. E este aparecerá. Na língua, no amor, na sociedade, na tradição, na arte nós realizaremos o brasileiro. Todo sacrifício por esse ideal é bonito e não será vão. Deixaremos de ser estaduais para sermos nacionais enfim. Deixaremos de ser afrancesados, deixaremos de ser aportuguesados, germanizados, não sei que mais para nos abrasileirarmos. Eu tenho o orgulho já de dizer que sou um brasileirado. “Juvenilidade Auriverde” como brinquei meio chorando e bem sofrendo na Paulicéia Desvairada. Até nós a arte brasileira foi um plátano: árvore de ornamentação. Nós com o sacrifício de nós mesmos estamos realizando o mistério alimentar do aipim: arranca-se a planta bonita que enverdece a terra, mas, porém, surge agarrada no caule e raiz que mata a fome: essa fome da Pátria, porca parida que devora os próprios filhos. No dia em que nós formos bem filhos da nossa terra a Humanidade se enriquecerá de mais uma expressão que me parece bem grotesca: o brasileiro. Eu sempre repito isso.
Mário de Andrade

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