sábado, 10 de maio de 2008

CARTAS DE MÁRIO DE ANDRADE PARA ZÉ BENTO

UM BELO PRESENTE
Luiz de Almeida


Ao abrir a caixa de e-mail tive a grata satisfação de encontrar correspondência do filho do meu professor de História, de nome Luís, aquele que me induziu, indiretamente, às pesquisas e aos estudos sobre o Modernismo Brasileiro e a Semana de Arte Moderna de 22. Luís Carlos Filho, narra sua emoção ao ler o "PREÂMBULO NÃO MUITO INTERESSANTE", postado neste Blog no dia 8 do correte mês, para o texto: "TESTAMENTO DE MENOTTI DEL PICCHIA SOBRE A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922" (Ver texto na sequência deste), onde narro o episódio que o seu pai havia solicitado que eu lesse A Revolução Paulista, do Menotti. Segundo o Luís Filho, seu pai falecera um dia após completar 78 anos, de enfarto. Deixara como herança uma biblioteca com mais de 8 mil livros; uma pasta arquivo contendo mais de 300 trabalhos de ex-alunos, onde o pai fizera anotações e comentários no verso das folhas, todas datilografadas. Dentre esses trabalhos, após vasculhar um a um, encontrou um do aluno Luiz Antonio Alves de Almeida, nº 29, um resumo sobre o livro "A Revolução Paulista", com a seguinte anotação no verso da última folha: "Resumo ótimo... mas tem mão de gato".

Nem preciso dizer que também isso me emocionou, principalmente pelo fato dele mencionar no final que iria tirar uma cópia xerox e enviar para mim. Jamais imaginei que o "danado" do professor Luís havia descoberto que não fora eu o autor daquele resumo. Apesar de sentir-me envergonhado, ri muito, pois hoje entendo que foi de uma sacanagem terrível da minha parte, mas... já faz tanto tempo, que agora passa ser apenas um episódio de lembrança e risos.
Nesse mesmo e-mail, Luís Carlos, gentilmente envia-me como anexo um texto simplesmente espetacular sobre Mário de Andrade e seu secretário Zé Bento, que, sem perder tempo, cravo no Blog, na sequência, pois é um texto maravilhoso que servirá para estudar e compreender mais um pouco da vida marioandradiana.
E, como agradecimento ao dileto Luís Carlos, servindo também como uma singela homenagem ao seu querido pai e meu ex-professor de História, eis o texto na íntegra:

A MINÚCIA DO COTIDIANO: CARTAS DE MÁRIO DE ANDRADE A SEU SECRETÁRIO JOSÉ BENTO
Marcos Antonio de Moraes


Testemunho de incomunicabilidade dos mais dolorosos na obra poética de Mário de Andrade, estes versos, em “Nunca estará sozinho”, evocam familiarmente, na Lira Paulistana, o jovem secretário com quem o escritor compartilhava a labuta diária de homem de letras no sobrado da Lopes Chaves: “Zé Bento vem comigo,/ Confissões na garganta,/ Nunca estará sozinho.” Se o poema, em sua totalidade de sentido, perfaz o périplo da “angustiosa impossibilidade de solidão”, convalidado na confidência de Mário em carta de 15 de outubro de 1944 a Carlos Drummond de Andrade, não deixa de desvendar também o tormento de quem acredita não poder se completar expansivo nas relações de amizade, evitando confidências e confissões. Essas, como se sabe, vicejaram mais vigorosamente no espaço epistolar, através de um tortuoso mecanismo de transferência psicológica, ao propiciar ao “infatigável escrevedor de cartas” o controle das sensações e o dimensionamento do que deveria ser dito e de que maneira.
As “confissões na garganta”, nos mostram, além do poema, o escritor e seu secretário, durante as manhãs dos dias úteis, na tarefa silenciosa de fichar livros, na limpeza de estantes abarrotadas ou no monótono datilografar das versões de textos que buscavam a justa forma. O verso ao mesmo tempo que pressupõe o desejo de compartir a experiência deixa entrever as relações de trabalho dominando o ambiente, estabelecendo papéis. Talvez aquilo que não podia ser dito fosse apenas para proteger o moço ainda prenhe de sonhos, no meio de um caminho cheio de lutas para atingir um alvo profissional, tornar-se bibliotecário. Ou, o menos provável nesse exercício de interpretação lírica que se enraíza na vida, a voz entranhada significasse somente o exercício de contenção de quem cobrava para si a imagem da fortaleza moral, sempre lhe norteando os atos e as palavras. Se houve o silêncio, a amizade nem sempre se conformou em expressões desgastadas ditas ou escritas. Metamorfoseou-se melhor em atitudes perenes.
Assim, no final de novembro de 1941, Mário deixa sobre a sua Remington todo o conjunto de poemas do “Marco de viração” para ser datilografado e a surpresa da dedicatória: “a José Bento Faria Ferraz”. Aí, transfigurado pela poesia, podia se contar ao amigo em versos de “Aspiração” (1924): “Dei tudo o que era meu, me gastei no meu ser” ou em “Ponteando sobre o amigo ruim” (1927): “Sou pesado, bastante estabanado,/ (...). Careço de caminho largo, bem direito./ Se falta espaço, quebro tudo,/ Me firo, me fatigo... Afinal caio.” O moço, cortado pela mudez do contentamento, dirige-se ao poeta, então em Araraquara: “Quanta coisa eu sinto em seus poemas. Não sou dos que escrevem. Pertenço ao grupo dos que lêem. (...). Não elogio, que isso de elogiar não vai muito bem entre dois seres que se compreendem, se conhecem e se estimam. É melhor o silêncio, seu mano, para nos compreendermos.”
O comedimento, mas a certeza da camaradagem, parece definir a convivência de Mário e Zebentinho ao longo de 12 anos, entre 1933 e 1945. A admiração e o respeito incondicional por aquele que tinha sido seu professor de História da Música e Estética no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo move o jovem secretário. Mário, um dia, soubera das dificuldades que passava, decidira ajudá-lo. Pedira-lhe que ficasse um pouco mais ao final da aula, para conversar um bocado. Haviam descido pelo elevador dos professores os três andares do Conservatório e caminhado pela avenida São João até o restaurante Carlino. Durante o jantar, viera a proposta que, que, num primeiro momento, assustara o aluno. Era preciso substituir Lourdes, a irmã de Mário que o ajudava na datilografia e nos cuidados com a biblioteca, pois ela ia se casar. Oferecera então o emprego: três a quatro horas por dia, 200 mil réis. Para quem vivia a iminência de ter que deixar São Paulo a fim de trabalhar em uma Coletoria Federal no interior de São Paulo, o convite surgia em boa hora, mas espantava pelo inusitado do ofício. José Bento, em meio ao mundo de moças pianistas por vocação ou mania de época, encaminhava-se, desde 1928, para a cultura musical, querendo seguir o exemplo do avô boêmio e seresteiro.
Nascido em Minas, passara pelo Seminário Santo Antonio de Taubaté, por gosto e devoção materna. E, de férias em São Paulo, para onde a mãe se mudara e abrira na Liberdade uma pensão, o rapaz resolvera de vez trocar a batina pelo Ginásio do Estado. De lá seguiu para o Conservatório, em cujos corredores, intrigado, observava de longe aquele professor das últimas turmas, “porte alto, bem vestido, sapatos de bico fino de verniz, andar altaneiro e um perfume suave que o acompanhava1”. Era Mário de Andrade.
O relato desse encontro e da convivência posterior se faz consistente nas bordas da memória e no cerne de uma correspondência extensa, loquaz e tocada pelo pragmático. Essas cartas conservadas por dois interlocutores zelosos, abrangem sobretudo os três anos difíceis que Mário viveu no Rio, desejando se afastar de ataques virulentos ao seu projeto cultural democrático e popular no Departamento de Cultura. Recolhem também distanciamentos menos sofridos: o escritor na chácara Sapucaia, em Araraquara, Zé Bento no Guarujá, descansando, mas sugerindo ao amigo a leitura de A Servidão humana de Somerset Maughan ou no Rio de Janeiro especializando-se em biblioteconomia, no segundo semestre de 1944.
Ao longo das folhas encontramos José Bento, tímido, deslocando-se conscientemente do plano em que se colocavam Oneyda Alvarenga e Fernando Mendes de Almeida, para se posicionar como o ajudante fiel e indispensável. Assume o caráter de admirador incondicional e afetivo, propenso a se sacrificar. Em certo momento acreditando que se tornara um peso para as finanças de Mário pretende deixar o emprego. Adivinhando o despropósito da intenção, a resposta de emocionada de Mário o nomeia definitivamente “amigo” e, franqueando logo em seguida a linha da fraternidade, ao chamá-lo de “irmão”. Aconselha aquele que seria depois o apaixonado bibliotecário da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto: “busque sempre empregos mais ou menos de acordo com as suas tendências e o seu gosto”. Mas naquele instante, a modéstia faz com que Zé Bento não consiga ver sem medo a sua atuação importante naquilo que lhe fora destinado como tarefa. Cria uma imagem modelar para si, decalcando-se na personagem Sancho de Cervantes: “Quero que minhas palavras sejam simples e interpretem toda a amizade, amizade de um sujeito como eu, que lhe quer como a um pai, um protetor, um amigo. Há três anos que o senhor teve a bondade de me tirar do nada e desde então vem me assistindo sempre, me confortando, me descobrindo um mundo novo, o das idéias, o da solidariedade humana. [...] Quero frisar que sempre estarei com o senhor, sempre terá ao seu lado essa figura apagada de seu secretário, tímido, besta, um Sancho-Pança diante da luminosa figura do Dom Quixote que vai pelo Brasil semeando cultura, amor ao pobre e confiança na humanidade.” (08/10/1938).
Para Mário de Andrade desarticulado moralmente na cidade do Cristo Redentor, à mercê da burocracia do Ministério de Capanema que o acolhera na Universidade do Distrito Federal e no Instituto Nacional do Livro (mas atrasando-lhe reincidentemente os vencimentos!) José Bento continua “às ordens” na Lopes Chaves. Cabe ao empenhado funcionário analisar os livros recebidos das editoras, reconhecer a importância deles para os estudos de Mário, sugerindo-lhe a compra ou não: “Vou comprar um livro recente, da Brasiliana, as Guerras nos Palmares do Ernesto Ennes, com ótima fonte de documentos, e também o Art populaire et loisirs ouvriers editado pelo Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, de Genebra. (...) Este último também possui ótima bibliografia no fim do volume, classificada por países. Posso comprá-los?” (26/10/1938). Adquire livros na “conta-corrente” na Civilização Brasileira, controla o estoque das obras do escritor guardadas em casa ou em consignação nas livrarias da cidade. Recebe as cartas, abre-as, reendereçando-as ao Rio, comunicando o novo endereço do professor, respondendo aquelas de cunho mais premente e impessoal. Goza da confiança do ausente: “Assine você mesmo o meu nome, copiando ou não a minha assinatura. Aprenda a me falsificar, pra me poupar certas caceteações” (03/05/1940). O trato franco autoriza a cumplicidade nas inconveniências, demandando, por exemplo, face à carta de Flávio de Carvalho, que o secretário transmita ao arquiteto que Mário não poderá “escrever para a revista do Salão de Maio por absoluta falta de documentação, e não ter tempo no momento, com vários trabalhos (...) encomendados” Por fim, coloca a situação real: “A razão é outra, mas dê essa” (13/02/1939).
A correspondência Mário de Andrade e José Bento Faria Ferraz retrata muito bem o labor prosaico e as etapas iniciais da pesquisa e da produção ensaística de Mário, dando idéia da extensão das tarefas do secretário. Documenta os cuidados essenciais à integridade do acervo, Mário recomendando, em carta de junho de 1940, a “limpeza, gasolinização e recontrole da posição numérica dos livros”. “Gasolinização” significava a desinfetar os volumes, aplicando “uma poção de pó da Pérsia, cânfora e gasolina ou querosene”2, receita preparada em casa. No âmbito das tarefas mais triviais, ainda competia ao secretário o controle dos artigos que deveriam ser entregues ao Suplemento em Rotogravura do Estado de S. Paulo, levando textos e ilustrações, recebendo o pagamento. Zé Bento também era os pés de Mário em São Paulo, dirigindo-se à Academia Paulista de Letras, ao Instituto Genealógico e a bancos.
O moço bibliotecário conhecia como ninguém os meandros do arquivo do escritor. As fichas do Dicionário musical, os envelopes da documentação de Na Pancada do Ganzá, revistas, as pastas de correspondência, tudo era ordenado cuidadosamente por suas mãos. Desejando encontrar, em outubro de 1944, uma carta de Cecília Meireles, Mário prorroga o prazo de mostrá-la a Murilo Miranda: “só mesmo quando (Zé Bento) chegar e reassumir o posto de secretário”. A trajetória dos estudos através das indicações dos passos da pesquisa fixada na correspondência documenta o método de trabalho do escritor e seus interesses imediatos. Os fichamentos destinados ao grande estudo sobre o Padre Jesuíno do Monte Carmelo, ao prefácio de Memórias de um sargento de Milícias para a Editora Martins não prescindiram das mãos do secretário. Juntar material, separando o indispensável, recorrer a bibliotecas, indagar personalidades. Mário indica o atalho, mas pede cuidado, ensinando as etapas da pesquisa: “Com o Preto é que a porca torce o rabo. Vão aqui os dois trabalhos que pretendo ajuntar num só e acrescentar. Leia para entender a escolha que você terá que fazer. Primeiro: tenho um livro sobre Simbolisme des Coulers ou coisa parecida, que foi daqui para aí na última grande remessa. Me mande já. Segundo: passe este meu estudo à Gilda, que fiquei mesmo de lhe enviar. Ela que o leia e o devolva imediatamente a você. Quanto às fichas, você, pelas que tiveram subtítulo, se desinteressará por todas as que tratarem de história, de escravidão, de anedotas, etc. Das outras você terá pacientemente que buscar nos livros para ver a que se referem. Só me interesso por cor preta como superstição geral, ditos e quadrinhas. Veja bem: versalhadas semicultas, eruditas ou popularesco-urbanas contra o preto, ápodos em desafios, não me interessam. De poesia só quadrinhas populares, você dando, se possível a região onde foi colhida. Além, está claro, da referência bibliográfica, pelos números (não se engane) pois tenho cópia aqui.”
Atabalhoado de afazeres, Mário de Andrade delega ao secretário a escolha de texto de Luís Pereira Barreto para uma antologia da Academia Paulista. Zé Bento só não pode ajudá-lo naquilo que o pensamento apenas se nuança no intelecto: “Tem certas modalidades de assuntos, e assuntos meus particulares em seus aspectos, Dona Ausente, Martírio dos Santos, etc. que é impossível você descobrir.” (19/11/1938).
Nas frinchas do trabalho, divisa-se a casa do escritor, os passos de Dona Mariquinha, guardadora de saudades e de dinheiros do filho que vivia no Rio, além do vulto silencioso da tia Nhãnhã; o irmão Carlos, deputado do Partido Democrático às voltas com a repressão do Estado Novo; os filhos de Lourdes, Terezinha e Carlos Augusto, nas primeiras descobertas; Gilda (Rocha, depois a Profa. Gilda Mello e Souza) consultando os livros do primo; Sebastiana e Vicentina, irmãs, fiéis à casa da Barra Funda, no de-fazer diário, cozinhando quitutes para enviar ao bon gourmant ausente.
E outros personagens adentram essa correspondência, diferenciando-a das publicadas até hoje ao desvelar a cada passo a minúcia do cotidiano. A “Morada o coração perdido” é observada do ângulo do jovem bibliotecário, familiarmente integrado ao ambiente e à rotina daquela família da pequena burguesia paulistana. No lugar de discussões literárias, chegam à janela da escrita os funcionários da Prefeitura: D. Ruth, Miguel Spera, Maria da Glória Capote Valente e Sônia Stermann, a moça da Discoteca Municipal que viria a ser a esposa de José Bento. Bate à porta “uma pobre mulher de cor, Lucinda Laurindo”, pedindo a Mário um “cartucho que um tal doutor Otonio de Camargo (...) enviou solicitando para ela um lugar de vigilância nos parques” (05/08/1938). Depara-se na carta de Mário, em julho de 1940 com o alfaiate Francisco Lettière, da Primor, precisando se desdobrar para fazer “3 roupas num máximo de 6 dias” para o freguês antigo de passagem por São Paulo, que havia confiado a seu tão certo secretário: “Até agora não fiz roupa, faz dois anos e meio, só de medo dos alfaiates daqui.” As miudezas do viver comum disseminam-se na escrita epistolográfica, informando que o telhado necessita de conserto, que a máquina será limpa se sobrar dinheiro. Só nessas cartas se sabe da precisão de Mário das “pastilhas Veabon, que se compra na farmácia do Veado (de Ouro)”, ou que, doente, podia lançar mão da “máquina de tomar banho de luz”. Pelo potencial biográfico e de recuperação de rastros do trabalho intelectual, a correspondência José Bento Faria Ferraz e Mário é uma bonita crônica de amizade, confiança e respeito ao profissionalismo.

NOTAS:

1 FERRAZ, José Bento Faria. “Estória de um bem querer”, 1995. Depoimento inédito depositado no Fundo José Bento Faria Ferraz, Instituto de Estudos Brasileiros, USP.
2 Idem.

FONTE: D.O. Leitura, a.17, nº 4. São Paulo, ago. 1999, p. 38-43.

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