sábado, 28 de junho de 2008

UM DOS "CAUSOS" NA VIDA DE MÁRIO DE ANDRADE


O MÁRIO DE ANDRADE DE ANTES DE ONTEM, ONTEM, HOJE, AMANHÃ, DEPOIS DE AMANHÃ E PARA SEMPRE SERÁ O:
MÁRIO TREZENTOS, TREZENTOS E CINQUENTA...

Mário de Andrade - Amazonas - foto arquivo IEB/USP


Mário de Andrade sempre desejou conhecer o Brasil. Fatos e casos diversos impediram com que ele realizasse totalmente esse seu grande desejo. Se fossemos enumerá-las aqui correríamos os riscos de faltar com a verdade ou exagerar em alguns outros aspectos – uns relevantes, outros nem tanto. Mas esses motivos pouco importam, principalmente agora. O importante é que as suas viagens etnográficas o realizaram de certa maneira tão enaltecedoras que talvez as que deixou de realizar não o importunaram tanto.
Todas as vezes, no entanto, que Mário viajou, que saiu da sua São Paulo querida, fatos importantes e também pitorescos aconteceram na sua vida. Neste texto pretendo narrar um caso (ou "causo") que pode ser classificado de “pitoresco”, “hilário”, quando ele esteve no Pará em 1927, principalmente por ter acontecido com ele – e mais ainda, pela resposta que ele deu ao episódio, que será narrado no extado e de acordo com a formatação que foi dada neste texto.
Antes dessa narrativa, um resumo simplificado de algumas “saídas” do nosso Mário de Andrade da sua Paulicéia:

1) Nas férias de julho de 1905, muito provavelmente, tem seu primeiro encontro com o mar, viajando para Santos a convite de parentes. A lembrança fica na crônica “O mar”, escrito em 12 de julho de 1932 no Diário Nacional – conforme descrito no Táxi e Crônicas no Diário Nacional – Livraria Duas Cidades – SP, 1976 – página 541:

- Vamos pra Santos?
- Mas fazer o quê?
- ... ver o mar.
- ... então vamos.
E assim constantemente, ninguém sabendo, feito os amantes clandestinos, vou pra Santos ver o mar.
A primeira vez que vi o mar, não me esqueço. (...)

2) Em 1913, após a morte do irmão Renato, - Pio Lourenço Correa, o Tio Pio, casado com Zulmira, sobrinha de Maria Luísa, leva Mário para sua fazenda, localizada no município de Araraquara, São Paulo.

3) Em 1916, - Conclui seu voluntariado com o Serviço Militar, em novembro, realizando manobras em Gericinó (RJ).

4) Em Junho de 1919, primeira viagem a Minas Gerais, passando pelas cidades históricas, quando encontra a obra barroca de Aleijadinho e visita Alphonsus de Guimaraens, poeta simbolista de sua admiração.

5) Em outubro de 1921, viaja para o Rio de Janeiro e, em casa do poeta Ronald de Carvalho, localizada na Rua Humaitá, 64, e lá conhece Manuel Bandeira. Conhece Villa-Lobos. A viagem de Mário de Andrade para o Rio de Janeiro teve a finalidade de divulgar o poema “Cenas de Crianças” e os versos de “Paulicéia Desvairada”, ainda em manuscrito.

6) Em 1924 realiza a histórica "Viagem da Descoberta do Brasil", Semana Santa dos modernistas e seus amigos, visitando as cidades históricas em Minas, juntamente com os modernistas Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e seu filho Nonê (Oswald de Andrade Filho), D. Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, René Thiollier, Gofredo da Silva Telles e o poeta francês Blaise Cendrars.

“Em 1924 não vim só, como da primeira vez. Veio uma grande caravana de jornalistas e intelectuais de São Paulo, com a intenção de assistir às tradicionais solenidades de Semana Santa. Era uma turma grande, onde não faltava o elemento feminino, representado por D. Olívia Penteado, muito elegante, e que transportara na viagem todos os seus hábitos de grande dama, inclusive uma secretária e a artista Tarsila do Amaral. Rodamos grande parte do interior de Minas. Em certa cidade, fomos objeto da curiosidade popular, devido ao grande número de pessoas e de bagagens. E, quando procedíamos a contagem das malas no hotel, fui abordado por um popular que desejava saber se éramos do circo. Aí, num momento de inspiração, perguntei a Tarsila: E os elefantes, onde estão?... Não se pode calcular o sucesso da pseudo-companhia de circo na cidadezinha tranqüila.” (ANDRADE, Mário de. “Entrevista”. In: Folha de Minas, 1939).

7) Em 1926, férias na “chacra” de Tio Pio, isto é, na Chácara da Sapucaia, em Araraquara. Primeira versão de Macunaíma, entre 16 e 23 de dezembro; a segunda, entre a última data e 13 de janeiro. O título não traz o aposto; os capítulos são dezessete, seguidos pelo epílogo. De acordo com o índice do primeiro momento, o capítulo final tinha por título “Torre Eiffel”. Dezembro: Férias em Araraquara.

- No depoimento de Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza (professores da Universidade de São Paulo), na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, SP, 36 – 1994, na Apresentação intitulada “A Lembrança Que Guardo de Mário”, na pág. 9, Gilda dá o seguinte depoimento:

“Deve ter sido no verão de 1926, depois da estadia costumeira na chácara que, vindo terminar as férias em nossa fazenda, brindou-nos com uma versão expurgada de Macunaíma. Tinha acabado de montar a narrativa na chácara, em seis dias de trabalho ininterrupto e, provavelmente, se divertia em testar os achados de sua grande criação junto a um público infantil, ávido de peripécias, afeito à esperteza dos bichos e ao mau caratismo dos gigantes. Era com ansiedade que esperávamos o cair da tarde, quando a porta de seu quarto se abria pra o corredor e ele já encontrava de banho tomado, acocorados no chão.
Te tudo que nos transmitiu, naquelas sessões memoráveis do terraço, guardamos sobretudo a imagem aterrorizadora do gigante Piaimã, que, como vou relatar, não nos apresentou como o duplo de Venceslau Pietro Pietra. Impulsionado pela nossa exaltação, nosso pavor crescente, o nervosismo de nossos apartes, ia fazendo alterações sucessivas no relato e incorporando-as, divertido, à nossa experiência local. Ora, aconteceu que meu pai atravessava um período tenso e perigoso, mantendo com um sitiante da redondeza, de nome Arinari, uma disputa por causa de caminhos. Todas as vezes que se preparava para ir à cidade, nós o víamos pôr o revólver na cintura e avisar minha mãe que, se encontrasse por acaso a passagem bloqueada, não responderia pelo que pudesse acontecer. (...).
Mário nos encontrou nessa atmosfera de presságios e, como era levemente sádico com as crianças, em vez de atenuá-las, explorou-a para curtir melhor a nossa reação. Uma tarde em que provavelmente nos encontrou mais motivados e receptivos, não se conteve: demorou-se na caracterização diabólica do terrível gigante e quando este já havia assumido aos nossos olhos a malvadeza absoluta do INIMIGO, perguntou com voz cavernosa: “E vocês sabem quem era afinal o gigante Piaimã?” Esperou uns segundos, correu os olhos pelo nosso pavor deliciado e, como ninguém conseguisse responder, concluiu sinistro: “O gigante Piaiamã era o ASINARI!”. Para nós quatro que o ouvíamos, Maria com dez anos, Carlos com oito, eu com seis, Fernando com quatro, foi a emoção mais violenta de nossa infância”. (...).

Ainda em 1926, Mário havia projetado uma viagem para o Nordeste, pensando talvez realizar o que chama “trabalho etnográfico”, ou seja, coleta de documentação. Numa carta de 19 de maio de 1926, Mário conta esse seu plano de viagem ao amigo Manuel Bandeira. Porém, os planos de Mário não se concretizaram nesse ano, mas sim em 1927.

8) 1927 - Primeira viagem do Turista Aprendiz, ao norte, entre maio e agosto. A 7 de maio, Mário parte de São Paulo para encontrar-se com os companheiros no Rio e juntos tomarem o vapor “Pedro I”, do Loide Brasileiro. No dia 13 de maio, partem do Rio de Janeiro a chamada “Comitiva da Rainha do Café” – D. Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, Mário de Andrade, Margarida Guedes Nogueira (Mag), sobrinha de D. Olívia, e Dulce do Amaral Pinto (Dolur), filha de Tarsila do Amaral. A excursão percorre grande parte da Amazônia, chegando a Iquitos e Nanai no Peru e à fronteira da Bolívia. Durante a viagem Mário escreve o diário do Turista Aprendiz, mas não o publica em vida (edição póstuma em 1977). O diário, as fotos da viagem e as legendas testemunham a repercussão da viagem em Macunaíma. Mário tinha um propósito nessas suas viagens: “conhecer o povo brasileiro”. D. Olívia era a Rainha do Café. Todas as cidades do Norte-Nordeste, onde tinham sido projetadas as paradas do vapor Pedro I, os políticos locais receberam essa mensagem:

“Recebam a Comitiva da Rainha do Café, Dona Olívia Guedes Penteado”.

Provavelmente numa dessas paradas da Comitiva no Estado do Pará, assim está narrado no livro Mário de Andrade – O Turista Aprendiz – Editora Duas Cidades, em co-edição com a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, SP, 1976 – com Estabelecimento de Texto, Introdução e Notas de Telê Porto Ancona Lopez, págs. 149 e 150:

“(...). Pelas oito horas chegou-se a Porto Velho, com Sto. Antonio do Mato Grosso, ma mesma margem, no outro estado do Brasil, a meia hora de olhar. Recepção oficial. Uma escola pública, com a professora num estado maravilhoso de elegância gorduchinha, coisa linda! acompanhando dona Olívia. Apresentações em penca. Visitas. Mercado sem caráter. Jornal. Almoço a bordo. Enfim posso sair mais livremente. Telegrafo. Fotografias.
- Dr. Mário de Andrade, secretário da Rainha do Café.
Desta vez arrebentei, porque arrebentei!
- Mas... eu não sou secretário de Dona Olívia...
- Mas!... o Sr. não veio na companhia dela, então!
- Sim... somos muito amigos, viemos...
- Então o Sr. está fazendo a viagem por sua conta!!!
Nem era possível zangar com o homem, tal o pasmo dele, vendo alguém que não era uma rainha enfarada e decerto meia maluca, andar passeando por aquelas paragens. (...)”.


Após esse acontecimento, eis aqui o ponto planejado deste texto, e que pode ser definido como “pitoresco” na vida de Mário de Andrade:

No jornal O Estado do Pará, foi editado matéria sobre a Comitiva visitante, onde o colunista, no texto, provavelmente tenha sido o mesmo que dialogou com Mário de Andrade, conforme descrito acima, talvez supondo que Mário de Andrade estivesse escondendo sua verdadeira identidade ou patente, ou não tendo mesmo o que escrever sobre Mário, inventou:

“Dr. Mário de Andrade, Secretário particular de S. Excia. o Dr. Washington Luiz quando presidente de S. Paulo”.

Mário não se conformou. Havia sido confundido como Secretário da Rainha do Café (D. Olívia Penteado). Negara. Então, imediatamente escreveu uma carta que foi editada naquele jornal, como segue, inclusive não sendo alterada a grafia:


UMA CARTA

O distineto literato dr. Mario de Andrade, que fez parte da comitiva da exma. sra. Guedes Penteado, enviou-nos hontem a seguinte carta:

Sr. redator d’O ESTADO DO PARÁ

Li hoje no seu excellente jornal as saudações amáveis que essa redacção dirigiu á exma. sra. Guedes Penteado e seus companheiros desta viagem pelo valle amazônico. Venho lhe trazer os nossos agradecimentos muito sinceros.

E aproveito o momento para uma retificação. O seu jornal me deu como secretario particular de S. Excia. o Dr. Washington Luiz quando presidente de S. Paulo. Não o fui e me apresso em retirar dos hombros essa benemerência. E o faço com a maxima liberdade pois que pelo que já experimentei posso afirmar a desnecessidade de qualquer titulo para que um brasileiro seja recebido fraternalmente por este povo admiravel do Pará.

Certo de que esta rectificação terá acolhida no seu jornal, sou do sr. Redactor o mais grato dos patricios.

MARIO DE ANDRADE

O texto acima, como já mencionado, era a temática principal deste texto. O objetivo, principalmente para quem estuda e – ou pesquisa a vida do autor macunaímico, e mesmo para quem está tendo contato pela primeira vez, é deixar cravado que “realmente” a vida de Mário de Andrade foi mesmo “trezentos, trezentos e cinqüenta, e sessenta e setenta e...

O historiador Robério Braga, em seu artigo “Mário de Andrade em Manaus", no site www.visitamazonas.com.br/, narra que Mário de Andrade, ao chegar em Manaus foi recebido como:

“Famoso, figura de proa do movimento modernista que explodira em 1922, (....)”.

Robério, inclusive narra parte de uma entrevista de Mário de Andrade falando de Manaus:

“Manaus é uma deliciosa mulher de duas idades.
Manaus foi uma virgem linda.
Hoje é uma mulher fecunda que ainda traz na sua atualidade a presença do passado.
Nos tempos áureos da borracha viveu se enfeitando: vosso teatro, vosso monumento a abertura dos portos amazônicos, vosso Palácio Rio Negro, inda são as jóias desse tempo leviano. Depois... jucurutu agourenta regongou os vossos telhados”.

Assim era Mário. Por onde passava deixava sua marca registrada. Quando ficava em silêncio realizando suas pesquisas, tirando suas fotos, pensando, meditanto ou fazendo suas anotações, as pessoas falavam dele o que bem entendiam, dando ao nosso Mário vários títulos, encargos e denominações que até hoje ainda vão aos poucos sendo descobertas pelos pesquisadores - trazendo para nós a certeza de que Mário de Andrade, além de escritor, poeta, colecionador, palestrante, romancista, contista, missivista, crítico, trezentos, trezentos e cinqüenta, etc... foi imã de fatos, casos, causos, lendas, histórias e historietas totalmente hilariantes e pitorescas. Esse FOI, É e SERÁ para sempre o nosso Mário.

Somente para concluir, Mário ainda deixaria sua Paulicéia em:

- 1928: Entre dezembro de 1918 até início de março de 1929, realiza a segunda “viagem etnográfica”, demorando-se no nordeste destinado a recolher dados e documentos sobre a música, o folclore, danças dramáticas, romances e a cultura popular da região, etc. Encontra no nordeste com Chico Antônio, cantador que reputa genial; transforma-o em personagem do romance abandonado O Café e de Vida do cantador (1944).
- 1929: Em junho, conferencista disputado, fala em Piracicaba sobre a música brasileira
- 1934: Em janeiro “estação de águas”, viaja para Lindóia – estado de São Paulo. Faz conferência sobre o assunto na Sociedade Felipe de Oliveira, do Rio; trabalho com os documentos recolhidos na viagem ao Nordeste.
- 1938: Em 27 de junho, transfere-se para o Rio de Janeiro. Com a ditadura (“Golpe Fascista”, diria Paulo Duarte) implantada em 10 de novembro de 1937, em maio, é demitido do Departamento de Cultura, em 12 de maio), regressando a São Paulo somente em fevereiro de 1941.
- 1942: Realiza, a convite da Casa do Estudante do Rio de Janeiro, em 30 de abril, a conferência “Movimento Modernista”, no salão do Itamarati.
- 1944: Em setembro, viagem a Belo Horizonte para conferências.
- 1945:
dia 25 de Fevereiro, deixa São Paulo... para sempre.

FONTES PESQUISADAS:

- Andrade, Mário de. A Imagem de Mário - Criação Editorial e Direção Gráfica de Salvador Monteiro e Leonor KAZ - Seleção de Textos e Introdução de Telê Porto Ancona Lopez e Equipe do IEB/USP. Edições Alumbramento: Livroarte Ed. 1984 - RJ.
- Andrade, Mário de. Taxi e Crônicas no Diário Nacional - Estabelecimento de Texto e Introdução de Telê Porto Ancona Lopez; IEB/USP - Livraria Duas Cidades, em co-edição com a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia de São Paulo - 1976.
- Andrade, Mário de. O Turista Aprendiz - Estabelecimento de texto, Introdução e Notas de Telê Porto Ancona Lopez - IEB/USP - Livraria Duas Cidades, em co-edição com a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia de São Paulo - 1976.
(Luiz de Almeida - Texto elaborado para estudos nas Oficinas Literárias da Exposição "RETALHOS DO MODERNISMO" - 2008).

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