domingo, 25 de maio de 2008

PROFº LATUF MUCCI: "IMAGENS PICTÓRICOPOÉTICAS DE MÁRIO DE ANDRADE"

IMAGENS PICTÓRICOPOÉTICAS
DE MÁRIO DE
ANDRADE

Latuf Isaias Mucci*


Resumo:

Os traços do Decadentismo no retrato múltiplo de Mário de Andrade, reverberado tanto nos retratos pintados por modernistas como nos poemas escritos pelo poeta de Paulicéia Desvairada.

No retrato múltiplo de Mário de Andrade (1893-1945), o dandismo vinca-se como traço comum, mesmo que sua mais dedicada estudiosa, Telê Ancona Lopez, veja-o como um “dandy feio” (1). Essa expressão – “Mário, o dandy feio”-, sem dúvida cunhada com imenso carinho, estrutura um paradoxo, na medida em que o dandismo quase equivale à beleza e certamente torna-se, pelo menos do ponto de vista dos que exibem o traço do dandismo, sinônimo de elegância ímpar. (2) Aliás, Roland Barthes, dândi da escritura, reconhece, em seus pares, o “uso desvairado do paradoxo” (3), observação que legitimaria a “feiúra” de Mário, superada, segundo Telê Lopez, “nos requintes e nas sensações” (4).
Essencialmente paradoxal, o dândi almeja forjar-se como obra de arte e cerca-se de “outras” obras de arte, povoando de singular beleza seu requintado isolamento, seu eleito exílio da sociedade dos filisteus, seu afastamento, com marcada indiferença, do mundo vulgar da plebe ignara. Revela-se, portanto, colecionador ou um ser que, não só, conforme postula Baudelaire, aspirando “a ser sublime o tempo todo”, vive e dorme “diante de um espelho” (5), mas, ainda, erige seu habitat como museu, galeria, cenário, teatro perfeito. Esse lar das artes estabelece, com seu sofisticado habitante, uma relação especular: os livros, por exemplo, tornam-se, como observa Susan Sontag, a respeito de Baudelaire, dândi inaugurador da poesia moderna, “objeto de contemplação, estímulo ao devaneio” (6).
Num só fragmento, temos o retrato escrito do dândi ungido e do colecionador cuidadoso, em êxtase literal diante das “coisas boas” e belas. Também em carta a Portinari, seu privilegiado interlocutor, reafirma esse seu movimentar esteta entre obras de arte:

Ontem enfim, passei o dia rearranjando este meu estúdio, e coloquei a Colona sentada e a Composição nas paredes. Ficou tão lindo que passei o dia todinho no quarto, gostando de viver, olhando os quadros, os marfins, num silêncio amoroso, cheio de belezas companheiras (7).

Colecionador como todo dândi que se preza e que preza, acima de tudo, a beleza, Mário de Andrade difere, todavia, do dândi-colecionador, na medida em que não adquire obras de arte pelo absoluto prazer solitário da arte, pela pura contemplação e pela extremamente narcísea autocontemplação, tampouco para encerrar-se na torre de marfim do esteticismo (8). Mesmo gozando, “sensualissimamente feliz”, seu “museu” particular da Rua Lopes Chaves, em São Paulo, o pensador de “O Movimento Modernista” (1942) jamais perdeu de vista o horizonte do compromisso social do artista, fornecendo, pioneiramente, “subsídios para uma história da renovação das artes no Brasil” (9). Baluarte do modernismo, coletou obras que mostrassem, em sua pujança criativa, a arte brasileira. Se colecionou arte estrangeira, fixou-se, sobretudo, nas manifestações da cultura nacional, nas expressões artísticas do nosso País, que, naqueles anos heróicos, necessitava, urgentemente, segundo o rapsodo de Macunaíma, de uma digital apenas fornecida pela arte. Peregrinando pelo Brasil, pesquisou sua cultura popular, o folclore, recolheu lendas, arrematou fatos e fotos, registrou cantos e canções, conquistou artistas do povo, adquiriu peças, enfim configurou, em sua casa, o universo cultural brasileiro, onde se marcaram fases de artistas, seus contemporâneos, que ele, professor-pesquisador-crítico, estimulou. Com sua aguçada consciência da cultura brasileira, colecionou desenhos, desenhos infantis e desenhos de alienados, gravuras, pinturas (óleos, têmperas, afrescos, guaches, colagens), esculturas (em metal, madeira, terracota, marfim), imagens religiosas, peças populares.
Na vasta coleção do vário Mário, recortamos três retratos – três quadros a óleo, precisamente assinados por modernistas-fundadores, que pintaram esse esteta engajado (esteta engajado: eis outro evidente paradoxo, visto que o esteticismo corta a arte de qualquer outro vínculo que não seja a l´art pour l´art)(10). Destarte, privilegiamos os retratos de Mário de Andrade pintados por Anita Malfatti, Lasar Segall e Candido Portinari. “Flanando” pela galeria Mário de Andrade, observamos que nosso modernista mor gostou de posar, serviu de modelo e operou como mote a muitos artistas plásticos, constituiu um memorial enfornado pela arte. Convém notar que o próprio Mário ensaiou uma investida nas artes plásticas. Contemplando, sobretudo, os retratos por Anita, Segall e Portinari, estabelecemos um confronto com certos fragmentos líricos do poeta de Paulicéia Desvairada, que declara, em alto e bom som, o vínculo entre sua produção literária e as artes, sejam plásticas (no caso vertente), seja a música.

No confronto da imagem pictórica e do texto (embora fragmentado) poético, intencionamos espelhar, um pouco mais, em tintas e em letras (11), o mutante perfil de Mário de Andrade, esse Narciso de 300/350 lagos. Aliás, já se tornou lugar quase comum citar o poema “Eu sou trezentos” (12), quando se refere à multiplicidade mariodeandradiana. Apoiando-nos na tradição desse clichê, fazemo-nos tutelar pelo nosso Autor, que abre O losango Cáqui (1924), dedicado a Anita Malfatti, enunciando: “Esse lugar-comum inesperado: Amor” (13). “Face Dispersa”, Narciso estilhaçado, senhor dos refrões, Mário, que esperava um dia topar consigo, tem em suas várias versões, picturais e escriturais, o ensaio da expectativa do reencontro. Desmultiplicada em vários ângulos, a imagem de Mário realiza aquilo que Leonardo da Vinci designou como “a infinidade inesgotável dos aspectos”.

Semelhantemente ao poeta imagístico inglês T.S. Eliot, forjara Mário de Andrade múltiplos rostos para enfrentar o outro e a si mesmo; tais ardis seguiram o compasso de um vertiginoso inventário, fixado, por exemplo, em quadros a óleo. Na perenidade da arte, Mário fica registrado ad perpetuam rei memoriam; “Nesta imagem/imagem de Marioenorme, multimário, plurimário dos amigos, dos críticos, dos admiradores(...)” (14), declama Telê, sua cultora.

Na crônica, “No Atelier” (15), Mário descreve o momento em que pousa para Anita, ele e Anita - almas “enclausuradas no sacrifício conventual das artes” (16).

Contemplando a artista que pinta, o modelo não esquece o ambiente da rua - “Havia uma alegria de milagre lá fora” (...) “A manhã infantil que cambalhotava pelos morros, em frente” -, que contrastava com a “penumbra oleosa do atelier” (17), com “a meia tinta do aposento” (18). Terminada a obra, o modelo pode concluir sua meditação diante da arte e da artista: “E ficamos os dois, Anita e eu, mudos, parados, horrorizados porque lá fora chamava-nos a manhã infantil e no silêncio do atelier (...)” (19).

Entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918, Anita Malfatti realizou, em São Paulo, sua segunda exposição individual, que, com traços nitidamente expressionistas, se consagrou como o marco inicial do movimento modernista. Dois retratos de Mário de Andrade foram pintados por Anita: um, sem data, em carvão sobre papel; o quadro a óleo sobre tela data de 1923, tem as dimensões 44x38. Com certo ar fauve, tingido de expressionismo, Mário retratado, com gravata, barba e bigode, óculos, olha, talvez tristemente, o espectador; ressalta-se a boca vermelha, querendo esboçar um sorriso quase enigmático de Mona Lisa (1503). Desse retrato fala o próprio modelo, ícone como Malfatti, do Modernismo:

Suas cores eram fantasmagorias simbólicas, eram sinônimos! Por trás da minha face longa, divinizada pelo traço do artista, um segundo plano arlequinal, que era minha alma. Tons de cinza que eram minha tristeza sem razão... Tons de oiro que eram minha alegria milionária...
Tons de fogo que eram meus ímpetos entusiásticos...
(20)

A esse retrato, podemos articular o poema “O Trovador”, de Paulicéia Desvairada (1922):

Sentimentos em mim do asperamente dos homens das primeiras eras...
As primaveras de sarcasmo intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlrorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde!
(21)

Também de Paulicéia desvairada, o poema “Tristura”, aqui em fragmento, ecoa no retrato por Anita:

Profundo. Imundo meu coração...
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram na bajulação sem sacrifícios...
Minha alma corcunda como a avenida São João...
E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu nunca em guisos nos meus interiores arlequinais!...
Paulicéia, minha noiva... Há matrimônios assim...
Ninguém os assistirá nos jamais!
As permanências de ser um na febre! (...)
(22)

Lasar Segall, lituano imigrado, em 1923, no Brasil, produziu uma arte de derivação expressionista, com traços fauves e cubistas. Com ele se encantou Mário de Andrade, cujo retrato data de 1927. Veste-o Segall como um verdadeiro dândi europeu: terno cinza, gravata branca com figuras geométricas, lenço na lapela, óculos bem leves. A pose é de esguelha e, no rosto afilado, sobressai a boca, carnuda e vermelha, remetendo ao sensualismo tropical. Insere-se o poeta num contexto mondrianiano, quase um quadro de fundo para ressaltar a figura do modelo. No famoso oxímoro mariodeandradiano – “Sou um tupi tangendo um alaúde” (talvez contracanto ao aforismo oswaldiano “Tupy or not tupy”) – Segall parece privilegiar o alaúde, instrumento sofisticado, acompanhador, na Europa, de canções eruditas (23). No terceiro verso de “Eu sou trezentos...”, defrontamo-nos com um enigma: “Oh espelhos, oh Pirineus! Oh caiçaras!” (24), tríade simbólica que contrapomos ao tupi do alaúde e que remetemos ao poema “Improviso do mal da América” (1929), de Poemas da negra (1929), dedicado a Cícero Dias; desse belíssimo poema, transcrevemos os versos finais:

Mas eu não posso me sentir negro nem vermelho!
De certo que essas cores também tecem minha roupa arlequinal,
Mas eu não me sinto negro, mas eu não me sinto vermelho,
Me sinto só branco, relumeando caridade e acolhimento,
Purificado na revolta contra os brancos, as pátrias, as guerras, as posses,
as preguiças e ignorâncias!
Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América!
Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada de raças!
(25)

No que tange (e tinge) ao sintagma “espelhos, Pirineus, caiçaras”, Mário oferece uma explicitação fonético-cultural, na marginália de Remate de Males (1930):

Esta é uma das cinco expressões nascidas mais espontaneamente em mim, e das que mais me deslumbram... Nunca pude saber o sentido exato dessas palavras, mas elas porém ficaram em mim como um refrão do significado íntimo do meu ser. “Procurei me analisar e achei uma explicação plausível” pra “Pirineus, caiçara”. Me parece que tem visivelmente aí uma antítese; a pesquisa violenta, exacerbada, voluntária do Brasil, explodindo num brasileirismo violento “caiçara”, é a minha mania de estudar, de me cultivar,que me fazia tão livre, tão longínquo do Brasil, fulgindo na palavra Pirineus. Essa angústia desnacionalizante da cultura (...). Mas o engraçado é o caso da palavra “espelhos”. Juro que jamais consegui lhe penetrar o sentido, embora eu a sentisse “verdadeira”, impossível de mudar. (...) Se os dois outros termos parecem (não tenho certeza) exprimir valores do meu ser coletivo, brasileirismo ibérico e cultura franco-internacional, “espelho! Refletia uma atitude meramente individualista do ser, uma instintividade epidérmica, coordenada organizadamente numa constância.
O “espelho” mirado me indicava a postura do retrato que eu queria tornar. Se é certo que nunca estudei atitudes no espelho, não é menos certo que muitas vezes me surpreendi me contemplando, me observando no espelho, e me retirava dele envergonhado
(26).

Mapeando a trajetória estética, “a biografia plástica” (27), desde Dresde a São Paulo, do pintor do painel “Navio de emigrantes” (1939-1941), Mário de Andrade compôs um ensaio encomiástico, intitulado “Lasar Segall”, de que extraímos alguns excertos:

Condensação desenhística que soube compreender a lição da arte negra e do Cubismo, desdenhando qualquer descritividade formal por meio de simplificações triangulares que organizam dentro da tela uma trama concentradora de linhas e espaços. E também Condensação cromática que, si se exprimia em tonalidades intensas enervadas inda mais pela bravura do pincel, já demonstrava um horror instintivo das cores radiantes e felizes. Não existem os vermelhos puros, a ausência do azul é quase total (28).

O crítico entusiasta não deixa de referir a influência do Brasil no jovem que aportara trazendo uma fortíssima carga de expressionismo: “o Brasil revelou-me o milagre da luz e da cor, ele confessará mais tarde” (29). Insistindo na condensação (palavra-chave, segundo Mário) na obra segalliana – condensação anímica, condensação desenhística, condensação plástica, condensação cromática, condensação dramática. Aludindo a outra condensação, afirma o enamorado contemplador:

Não é mais o fulgor duma nota viva que o atrai, algum contraste brutal, mas a vida secreta dos tons numa variedade sutil, em que de novo o pincel contagia a tela, lhe deixando a lembrança voluptuosa do seu beijo (30).

Quase no limiar do ensaio “Lasar Segall”, Mário de Andrade cita uma “norma premonitória” do seu pintor; “o artista está entre a terra e o céu” (31), epigrama retomado lá pelos fins do mesmo texto crítico; essa “norma” poderia ser também aplicada a Mário de Andrade, colecionador hedonista e artista envolvido na “própria vida com suas dores fidelíssimas” (32). Se Lasar Segall, lituano tornado brasileiro, realça o lado alaudista de Mário de Andrade, Candido Portinari, paulista como o retratado, calca suas tintas no aspecto “tupi”, “caiçara”, “bardo mestiço”. Operando no limiar entre certo academicismo e certeiro modernismo, o pintor de Brodósqui representa e apresenta um Mário forte, com tórax erguido (“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”), queixo altaneiro, com olhar firme, que não fita quem o olha, contudo mira longe. Seu vestuário nada tem da indumentária de um dândi; enverga uma camisa comum, ligeiramente aberta, mostrando parte do colo. Como nos retratos a óleo, pintados por Anita e Lasar, a boca avulta-se no quadro de Portinari: a boca encarnada, com lábios grossos, que fala, que critica, que acolhe, que beija. Ao fundo dessa “Gioconda” talvez perplexa, uns retirantes, um casebre, uma bandeira hasteada, um céu com tons de azul escuro e azul claro, combinando com o azul da camisa do modelo.
Nesse retrato em azul, projetamos o poema XXXIII, de O Losango Cáqui:

Meu gozo profundo ante a manhã Sol
a vida carnaval
Amigos
Amores
Risadas
Os piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos
de artistas de cinema, desses que vêm nos maços de cigarros
Me sinto a Assunção de Murillo!
Já estou livre da dor...
Mas todo vibro da alegria de viver.
Eis porque minha alma inda é impura
(33).

Outro poema, este de Clan do jaboti (1927), dedicado a Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), pode dialogar com o quadro de Portinari:

O poeta come amendoim (1924)

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados
Foi o Sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
(...)
A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
(...) Brasil que eu amo não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso
(...)
(34).

Lançado por Mário de Andrade, a partir do Salão de 1934, no Rio de Janeiro, Portinari é visto como a imagem do artista brasileiro ideal e necessário naquele momento de nossa história, como pondera a crítica de arte Annateresa Fabris:

Orgulhoso por ter sido o descobridor de Portinari, por tê-lo apoiado a despeito da preferência dos demais modernos por outros artistas, Mário de Andrade converte-se desde logo em seu paladino, a defendê-lo, antes de tudo, das “investidas insidiosas” de Segall (35).

No retrato pintado, Portinari inscreve uma feliz analogia: “Você parece um santo espanhol de madeira, do século treze” (36). “Correspondente contumaz”, de outra mineira (37) (além de Pedro Nava, Drummond...), a poetisa Henriqueta Lisboa: falecida no dia 9 de outubro de 1985, dia em que Mário completaria 91 anos) foi sua confidente também quanto à obra de Portinari e dele recebeu carta, datada de 11.VII.41, onde considera:

Nunca fui procurar nos meus livros os santos espanhóis do “século treze” exatamente, pra ver si ele acertou na data.
Mas sei o que ele queria dizer, vendo atrás da minha feiúra Dura e minha cor que são bem de madeira, uma bondade, O sujeito bom que ele exigia de mim pra me querer bem
(38).

Assumindo sua sacra “feiúra”, o dândi, colecionador de imagens de santos, aponta a arte, “transfiguradora”, sobretudo quando se executa o concerto das várias artes, sob a regência da busca incessante da própria identidade, da identidade da cultura do Brasil, das identidades disseminadas em poemas, quadros, textos. Não ostentará “o brilho inútil
das estrelas” o exercício de Narciso, espelhado nos lagos de quadros a óleo e em ressonâncias de alguns fragmentos líricos. Diferentemente de Dorian Gray – protagonista do romance The Picture of Dorian Gray (39) de Oscar Wilde, Mário de Andrade não firmou um pacto fáustico com a arte. Nas múltiplas versões de The Picture of Mário de Andrade, encontramos tanto “o diabo” quanto “o anjo”, a que o próprio retratado se refere ao comentar, respectivamente, seu retrato por Segall e por Portinari (40). Segundo Eneida Maria de Souza, nosso Autor, assim refletindo sobre seus dois aspectos, o diabólico e o angelical, vale-se do artifício de falar de si através do outro, recompondo imaginariamente seu auto-retrato, com a ajuda de várias mãos e em diversos tons(...). Esse retrato, traçado e vivido de forma inacabada ao longo do tempo, recebe novo contorno quando é contemplado no presente, à distância e na pele de um personagem que pensa na terceira pessoa (41).

Se, em carta, de 1924, a Drummond, Mário de Andrade afirma “o importante não é ficar, é viver. Eu vivo”, podemos, igualmente, considerar que o poeta retratado – Narciso espelhado nas “águas oleosas” desse Tietê da pintura - não só viveu, breve, porém intensamente, como ficou, através da magia da arte, tanto da que ele copiosamente produziu quanto da que ele inspirou e tem inspirado, em tintas e letras.

Notas

(1) LOPEZ, Telê Ancona. O riso e o ríctus. In:____. A Imagem de Mário. São Paulo: Alumbramento, 1984. p. 12.
(2) MUCCI, Latuf Isaias. Ruína & simulacro decadentista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. p. 49-53.
(3) BARTHES, Roland. Roland Barthes. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 114.
(4) LOPEZ, Telê. Loc. Cit.
(5) BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Robert Lafond, 1980. p. 406.
(6) SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. São Paulo: L&PM, 1986. p. 93.
(7) _______. In:____. A Imagem de Mário. Loc. Cit., p. 164.
(8) MUCCI, Latuf Isaias. A poética do esteticismo. 1993. Tese (Doutorado em Poética)-Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. Mimeo.
(9) AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1972.
(10) MUCCI, L.I. A poética do esteticismo. Loc. Cit.
(11) Sinalizamos que o verbo grego graphein traduz-se por “pintar” e “escrever”, como se a pintura fora uma scritura e vice-versa. Ipotesi - Juiz de Fora - v.7 - n.2 - pag 51-59 - jul/dez – 2003
(12) ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 211.
(13) _______. Id., ib. p. 123.
(14) LOPEZ, Telê. Loc. Cit., p.9.
(15) ANDRADE, Mário de. Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 47-50.
(16) Id., ib.. p. 49.
(17) Id.,ib.. p. 47.
(18) Id.,ib.. p. 49.
(19) Id,,.ib.. p. 50.
(20) ANDRADE, Mário de. Cartas a Anita Malfatti. Op. cit.. p. 48.
(21) ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Op. Cit.. p. 83.
(22) Id.,ib.. p. 90.
(23) ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. p. 15.
(24) _______. Poesias completas. Op. Cit. p. 211.
(25) Id.,ib.. p. 266-267.
(26) ANDRADE, Mário de. Poesias completas, Loc. Cit.,. p. 46, 47, 48.
(27) _______. Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. p. 43.
(28) Id, ib.. p. 46.
(29) Id.,ib.. p. 47.
(30) Id., ib.. p. 51.
(31) Id.,ib.. p. 46.
(32) Id., ib.. p. 61.
(33) ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Loc., cit.. p. 146.
(34) Id.,ib.. p. 161-162.
(35) FABRIS, Annateresa. História de uma amizade. In: ANDRADE, Mário de. Portinari, amico mio. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p. 17.
(36) Id.,ib. ,p.24.
(37) ANDRADE, Mário de. Carta aos mineiros. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. p.26-30. (Nesse passo há uma relação de todos os correspondentes mineiros do poeta paulista).
(38) ANDRADE, Mário de. Querida Henriqueta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. p.51.
(39) MUCCI, Latuf Isaias. Ruína & simulacro decadentista. Loc.cit.. p.72-76.
(40) ANDRADE, Mário de. Querida Henriqueta. Loc. cit.. p.56-57.
(41) SOUZA, Eneida Maria de. Memorial. UFMG, 1991. p.8. Mimeo Imagens pictórico-poéticas de Mário de Andrade - Latuf Isaias Mucci .

(Latuf Isaias Mucci – Pós-doutor em Letras Clássicas e Vernáculas (USP); doutor em Poética (UFRJ); mestre em Ciências Sociais (Unversité Catholique de Louvain, Bélgica); mestre em Teoria Literária (UFRJ); professor dos Programas de Pós-Graduação em Letras e em Ciência da Arte, da UFF. Poeta, ensaísta, crítico literário e de artes.

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