sexta-feira, 31 de outubro de 2008

CARTA "INÉDITA" DE MÁRIO DE ANDRADE

CARTA DE MÁRIO DE ANDRADE
PARA

ALBERTO LAMEGO

Mário de Andrade - (Foto Reprodução s/d)

Assim escreve o Pesquisador e Professor da Universidade Federal Fluminense Arthur Soffiati:
Entre 1984 e 1986 empreendi uma exaustiva pesquisa à procura das cartas de Mário de Andrade a Alberto Frederico de Morais Lamego. Várias pessoas tentaram dissuadir-me da empreitada sob a alegação de que a visita de Mário a Campos, em fins de 1935, a serviço da então recém-criada Universidade de São Paulo, para efetuar a aquisição da biblioteca e do arquivo de Lamego, não havia deixado rastros que justificassem uma investigação. Confiando na minha intuição e no meu conhecimento dos hábitos de Mário de Andrade, acabei por encontrar doze cartas e bilhetes escritos pelo insigne autor de Paulicéia Desvairada ao aturo de A Terra Goitacá. Para tanto, andei pelos arquivos da Universidade de São Paulo, sobretudo no de Mário, sob guarda do Instituto de Estudos Brasileiros: na casa das filhas de Lamego, D. Maria Eugênia Ribeiro Lamego e Maria Conceição Ribeiro Lamego; no arquivo de Gustavo Copanema no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC; no Arquivo Histórico do Liceu de Humanidades de Campos, e no Arquivo da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Além das doze missivas, levantei farta correspondência e documentação relativa às relações intelectuais de Lamego e Mário, bem como à venda da preciosa coleção para a USP. Um esforço assim tão intenso deu-me a impressão de que nenhuma novidade mais surgiria até 1955, quando a correspondência passiva de Mário por determinação sua, poderá ser aberta, permitindo-nos conhecer as caras que Lamego lhe endereço. Mesmo que um investigador disponha de número suficiente de provas para desvendar um crime, ele não deve jamais ter a arrogância de pensar que detém todas as provas. Assim o pesquisador. Por mais documentos que reúna, ele não pode jamais contar com a façanha de enfeixar em suas mãos todas as pegadas impressas no solo da história. Foi o que ocorreu comigo. Súbito, vi-me frente com uma nova carta de Mário a Lamego que, se tivesse sido encontrada por mim, figuraria como a carta n.º 2 do livro Mário de Andrade e(m) Campos do Goitacases – Cartas de Mário de Mário de Andrade a Alberto Lamego – 1925/1938 (Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 1992), com três estudos introdutórios e notas de minha autoria.
Por mais meticulosa que tenha sido a minha investigação, esta carta me passou despercebida ou não estava no acervo quando da minha varredura. Coube a um pesquisador extremamente experiente encontrá-la. Trata-se de Olímpio José Garcia Matos, que, ao reunir documentos para a exposição da Biblioteca Nacional em homenagem ao centenário de nascimento de Mário de Andrade, topou com ela na casa das filhas de Lamego e, imediatamente, com seu faro apurado para assuntos relativos à cultura brasileira, intuiu que ela não havia sido publicada por mim.
Terminada a exposição, contei com todo o incentivo dele para a publicação deste documento inédito. No geral, o tom da carta não difere do das outras que Mário endereçou a Lamego. Creio, porém, que todos os escritos derivados da mente e do punho do grande intelectual merecem o conhecimento público. Por essa razão, eis a carta do genial paulistano ao historiador de Campos devidamente anotada. Devo esclarecer, por derradeiro, que trago à lume documento inédito na nota n.º 2, que a acompanha.

S. Paulo 27-XII-35

Meu caro dr. Alberto Lamego

Venho lhe agradecer a bondade das suas cartas e do artigo. Ao mesmo tempo quero lhe desejar de todo o coração e aos de sua família um bom ano de 1936. Aqui vai um último artigo sobre sua biblioteca (1) que precisa de certas explicações. É possível que o sr. encontre nele algumas afirmações menos exatas, ou lhe desagrade o “tom” do escrito. Desculpe o tom que é da feição inadaptável do meu espírito e perdoe as incertezas pela urgência e circunstância em que o artigo me foi imperativamente imposto. Não tive por onde recusar e não tinha tempo nem mais documentos em minhas mãos para indagar e pesquisar. (2) Fui obrigado a me servir exclusivamente da memória que em mim é fraca e fantasistamente falsificadora. (3)
Tenho mais a lhe contar que já foi nomeado um bibliotecário na Universidade para cuidar da sua biblioteca.(4) Esta já vai sendo desencaixotada e catalogada. Dentro duns três meses talvez, hei de lhe dar notícias precisas do que se fez.
Peço-lhe recomendar-me carinhosamente aos seus e queira aceitar a mais garantida saudade do amigo
Mário de Andrade.


Notas:

(1) – Refere-se ao artigo “A Biblioteca Lamego”, publicada originalmente em “O Estado de S. Paulo”, de 22 de dezembro de 1935, reproduzido por Myriam Ellis na “Apresentação” ao “Inventário Analítico dos Manuscritos da Coleção Lamego” – Vol. 1 (São Paulo, IEB/USP – 1983) e em “Mário de Andrade e(m) Campos dos Goitacases – Cartas de Mário de Andrade a Alberto Lamego – 1935/1938 (Niterói, Eduff, 1992), com três estudos introdutórios e notas de minha autoria;
(2) – O acervo de Alberto Lamego foi transportado em 13 caixotes e numa mala, em que Mário acondicionou os documentos que julgava mais preciosos. Todo ele foi entregue a Ruy Bloem (quando foi secretário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP). Mário de Andrade comunica a sua entrega através do ofício nº 119, do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, que dirigia, a Antônio de Almeida Prado (que era o Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP), que acusa seu recebimento mediante o ofício nº 412m de 18 de novembro de 1935:

Illmo. Sr. Dr. Mário de Andrade
M.D. Diretor do Departamento de Cultura e Recreação

Recebi o ofício nº 119, de 13 do corrente, em que V.S. me comunica já estar em São Paulo a bibliotheca do Dr. Alberto Lamego, adquirida pelo Governo do Estado para a Universidade, por seu intermédio.
Antes do mais, cumpre-me agradecer-lhe a solicitude com que V.S. se desempenhou da incumbência de buscar incorporar ao patrimônio intellectual de S. Paulo a preciosa collecção de livros e documentos organizada pelo dr. Alberto Lamego. Foi esse um grande serviço por V.S. prestado á causa da cultura de nosso Estado.
Attendendo á sua solicitação, communico-lhe que o dr. Ruy Bloem, Secretário da Faculdade de Philosophia, Sciencias e Letras, á qual se destinará essa Bibliotheca, está encarregado de recebel-a, em nome da mesma Faculdade.
Reitero a V.S. os protestos de minha distincta consideração.

Dr. A. de Almeida Prado
Director


(3) – Em várias cartas a amigos, Mário de Andrade queixou-se de sua dificuldade em memorizar. Que baste apenas esta confissão à Oneyda Alvarenga, em famosa carta de 14 de setembro de 1940, escrita no Rio de Janeiro:

(...)
“Não só o uso e abuso de todos os prazeres da vida baixa me tomaram e tomam muito tempo (levo sempre pelo menos três quartos de hora me barbeando...) mas desde cedo esses abusos me prejudicam muito certas faculdades, especialmente a memória. Si eu guardasse na memória pelo menos um décimo de tudo quanto tenho lido... e compreendido, acho que seria um assombro de erudição, coisas diferentes. Mas não guardo nem a milésima parte do que apreendo! Eu sou o tipo de sujeito que ‘na sabe’! (Não pense que estou me humilhando, já me explico.) E saberá você as matérias que menos eu ‘sei’? São História da Música, Harmonia, Contraponto, Folclore!!! Palavra de honra, Oneida. Uma análise harmônica me custa absurdos de esforços, me esqueço das regras. Em História (qualquer aliás) lida minuciosamente, apaixonada mas compreendidamente, datas sou absolutamente incapaz de guardar, os nomes me fogem cincoenta em cem, e os próprios fatos baralho e em grande parte esqueço. Fica uma súmula muito nebulosa, sem síntese nem qualquer análise, uma verdadeira nebulosa sem luz nem medida. E é tudo assim, quase um martírio. De forma que si tenho de criticar um livro de Érico Veríssimo, pra me repor dentro da espécie dele, sou obrigado a ler preliminarmente dois dos livros anteriores dele. E não se trata apenas de ‘refrescar as idéias’, trata-se exatamente de rever o conhecimento perdido. Tu em mim fica memoriado como uma nebulosa”. (...).

Sra. Oneyda Alvarenga (Foto Reprodução s/d)

(Essa carta de Mário de Andrade para Oneyda Alvarenga é a mais longa carta escrita por ele. Caso haja interesse o amigo leitor poderá degustá-la nas páginas 266 até 298, do livro: Cartas de Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga – Editora Duas Cidades, 1983 – São Paulo).

(4) – Minhas pesquisas não conseguiram descobrir o nome do bibliotecário a que alude Mário. Sabe-se que, em 1937, quem cuidava da biblioteca era Rui Tibiriçá, afastado porque “foram descobertas algumas irregularidades, empréstimos liberdosos de livros, etc”, conforme informação de Mário a Lamego em carta de 13 de outubro de 1937.

(Alberto Saffiotti – professor da Universidade Federal Fluminense, autor da introdução e das notas do livro: Mário de Andrade e(em) Campos Goitacases – Cartas de Mário de Andrade a Alberto Lamego (1935-1938).

Fontes de Pesquisa:
1 – Jornal D.O. Leitura, recorte recebido pelo Retalhos do Modernismo, sem data. Com certeza após o ano 2000, pois até 1992, Soffiatti não conhecia a mencionada carta.
2 – Cartas de Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga – Editora Duas Cidades, 1983 – São Paulo).

Nota:
1 – Nas cartas mencionadas no texto: mantida a grafia original.

Um comentário:

  1. Oi, Luíz!!

    Fiz uma breve leitura da biografia de Lamego para entender melhor a postagem antes mesmo de lê-la.

    O bacana, pra mim, ao ler a missiva, é "respirar o mesmo ar" de paixão genuína de Mário de Andrade pela nossa gente; uma vez que Lamego fora um grande estudioso e pesquisador da formação da sociedade brasileira, sempre relacionando o homem ao seu meio - de onde vem, de fato, a cultura.

    Obrigada pela oportunidade de ampliar meus conhecimentos.

    Um grande abraço!

    Taninha

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