segunda-feira, 30 de abril de 2012

MANIFESTO ANTROPÓFAGO


O MANIFESTO ANTROPÓFAGO
DO OSWALD INCOMODADOR

Há 84 anos, em 1º de maio de 1928, “Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, Oswald de Andrade publicava no nº 1 da Revista de Antropofagia, sob a direção de Antônio de Alcântara Machado e de Raul Bopp, o “Manifesto Antropófago”, composto de 52 parágrafos, que persiste até hoje na pauta dos críticos, pesquisadores e mestres literários, nas tentativas de definições menos vagas e deduções dos mais prováveis intentos do autor – este, ainda incomodando muitos eruditos da intelectualidade brasileira. 
O objetivo do Retalhos é apenas cravar a lembrança da data que foi editado o Manifesto Antropófago e do seu conteúdo, para que não nos esqueçamos de estudá-lo e discuti-lo, como também, guardada as devidas proporções do conteúdo desta postagem, relembrar o último apelo de Oswald de Andrade, dirigido aos participantes de um encontro de intelectuais, realizada no Rio de Janeiro, em 1954, e enviada ao artista plástico Di Cavalcanti, clamando pela continuidade de sua obra, especialmente do conceito de “antropofagia” cunhado por ele 1928:
 “A reabilitação do primitivo é uma tarefa que compete aos americanos. (...).
Devido ao meu estado de saúde, não posso tornar mais longa esta comunicação que julgo essencial a uma revisão de conceitos sobre o homem da América. Faço pois um apelo a todos os estudiosos desse grande assunto para que tomem em consideração a grandeza do primitivo, o seu sólido conceito de vida como devoração e levem avante toda uma filosofia que está para ser feita”. (Almeida, Maria Cândida Ferreira de. In: “Só me interessa o que não é meu”: a antropofagia de Oswald de Andrade – Ensaio da autora, ICBV, sd – p. 1).
Alguns historiadores sustentam que o nascimento do Manifesto Antropófago deu-se quando, em 1928, Tarsila pinta uma tela para ser presenteada ao marido Oswald, em seu aniversário – uma figura gigantesca, de cabeça pequenina, pernas e pés enormes. Oswald e Raul Bopp dão ao quadro o nome de Abaporu: em tupi abá, “homem” + poru, “que come gente” = antropófago. Outros alegam que a obra de Tarsila serviu apenas para “aguçar” Oswald a concluir o referido manifesto.
Várias são as deduções sobre o intento oswaldiano e sobre a própria síntese estética do Manifesto Antropófago defendidas por respeitáveis críticos e mestres, como: “O Manifesto Antropófago é a grande síntese estética e cultural da primeira fase modernista, envolvida com as especulações das vanguardas europeias” – conforme a identificação de João Luiz Lafetá: “O Manifesto Antropófago é o projeto estético para diferenciar do projeto ideológico” da segunda fase. (Lafetá, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. Duas Cidades, São Paulo, 1974, pp. 11 a 25); outra, mais evidente, significando as verdadeiras propostas estéticas e culturais do autor, onde ele declina toda sua radicalização (tratando-se de Oswald de Andrade “tudo é radicalidade”), está nas linhas e nas entrelinhas do ensaio sobre a poesia oswaldiana: “Uma Poética da Radicalidade” (1965), do Haroldo de Campos [Obras Completas de Oswald de Andrade: Pau Brasil – 1990, Ed. Globo, parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, edição compilada na edição de Pau-Brasil, Cancioneiro de Oswald de Andrade, prefaciado por Paulo Prado, iluminado por Tarsila, 1965; impresso pelo “Sans Pareil” de Paris – 37, Avenue Kléber. (É bom mencionar que esse ensaio de Haroldo de Campos foi traduzido em 2010, na França, por Antoine Chareyre: “Une poétique de la radicalité: Essai sur la poésie d’Oswald de Andrade”)].
Muitos críticos, inclusive o próprio Haroldo de Campos, afirmam que o Manifesto Antropófago foi uma espécie de “amadurecimento estético” de Oswald, originado nos poemas de Pau-Brasil. Ao contrário, Wilson Martins (Martins, Wilson – O Modernismo. Cultrix, São Paulo, sd. p. 9), afirma que a Antropofagia defendia o mesmo programa do Pau-Brasil, apenas com “um pouco mais de nervo” e “com certa prolixidade enxundiosa”.
Muitos ainda questionam: - Qual foi o verdadeiro propósito oswaldiano com o Manifesto Antropófago? – Estava Oswald realmente preocupado com uma nova identidade da cultura nacional? – Afinal, ao escrever o Manifesto Antropófago, Oswald teria se aproveitado das ideias futuristas contidas num texto do francês Pierre Albert-Birot?; – e, mais diretamente, das de Jean-Pierre Brisset, outro francês tido por excêntrico e até por enfermo mental, como afirmam alguns críticos? – Qual foi o nível de influência de Blaise Cendrars, o professor de modernidade de Oswald de Andrade? – Através do Manifesto Antropófago, Oswald pretendeu lançar um novo modelo de pensamento cultural que reforçava os projetos lançados na Semana de 22?
Atualmente ainda buscamos por respostas – mas:
- Quais os verdadeiros motivos do escritor Oswald de Andrade e do seu Manifesto Antropófago, incomodarem tanto a intelectualidade brasileira??? - Até hoje??? – Quais as razões de não colocarem mais nas pautas de debates os 52 parágrafos do Manifesto? – Não seria oportuna uma releitura voltada para a política e a cultura? (Atuais??).   
Sem mais perguntas e concluindo, cravo parte do texto do mestre em Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia, Jorge de Souza Araújo, no “Manifesto Antropófago: um breve comentário”, editado pelo D.O. Leitura, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, edição nº 102, de 9/11/1990, p. 7 - onde afirma:
“(...).//É preciso, contudo, verificar que o Manifesto Antropófago transpõe o limiar da questão estética e, em sua síntese transgressora, visa a uma releitura, radical e multifária, da cultura brasileira. O primeiro parágrafo deixa bem claro o propósito: só a antropofagia no une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. //Em outras palavras, só a devoração cultural abrirá os caminhos para nossa identidade. (...). O ponto central está no parágrafo: Tupy or not tupy that is the question – em que o corte parodístico do discurso já alerta para a necessidade de encarar, sem influências estrangeiras, o problema da nacionalidade".
Apesar do Manifesto Antropófago ser do conhecimento de todos, segue na íntegra, conforme editado pela Paz e Terra, São Paulo, 1966 – Coleção Leitura, pp. 17-27. (Conservada a ortografia original da editora. Utilizadas as cores preta e vermelha para diferenciação dos parágrafos).

(Luiz de Almeida)


MANIFESTO ANTROPÓFAGO

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju.
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE

Em Piratininga
       Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.
    (Revista de Antropofagia, Ano 1, Nº 1, maio de 1928)

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SOBRE OSWALD DE ANDRADE
NO BLOG RETALHOS:


- Link importante para os interessados em conhecer a Revista Antropofágica, como também o excelente conteúdo do site da Brasiliana/USP:

FONTES PESQUISADAS:

- Andrade, Oswald. Pau-Brasil. Obras Completas. Ed. Globo e Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. 1ª Edição, São Paulo, 1990;
- Brito, Mário da Silva. As Metamorfoses de Oswald de Andrade. Conselho Estadual de Cultura do Estado de São Paulo. Imprensa Oficial do Estado, São Paulo, 1972;
- Campos, Haroldo. “Uma poética da radicalidade” En Oswald de Andrade - Obras Completas - v. VII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974;
- Eleutério, Maria de Lourdes. Oswald: Itinerário de um Homem sem Profissão. Editora Unicamp, Campinas – São Paulo, 1989;
- Fonseca, Maria Augusta. Oswald de Andrade: Biografia. Art Editora & Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990;
- Teles, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Vozes, Petrópolis, 1976.
- Outras: citadas no corpo do texto.