domingo, 14 de outubro de 2012

GUILHERME DE ALMEIDA & HAIKAIS


GUILHERME DE ALMEIDA:
ENTREVISTA SOBRE HAIKAI


Guilherme de Almeida - Foto Reprodução
Entrevista com GUILHERME DE ALMEIDA, concedida a Genésio Pereira Filho, publicada na "Gazeta Magazine" de 29/09/1941(*). Aqui no Blog RETALHOS você poderá também acompanhar outro texto sobre Haikai de Guilherme de Almeida, clicando no link:
 HAIKAI, POESIA DE ESTAÇÃO

Genésio - Os haikai - usamos o plural porque o singular incorre num cacófato.  
Guilherme - Criação do século XVII, de Bashô, que era uma poeta boêmio, de vida inconstante e cheia de altos e baixos. Fez escola. É poesia essencialmente sintética, de dezessete sílabas, muito popular no Japão. A poesia mais popular, porém, é a "tanka", de trinta e uma sílabas. Existem também o "dodoitsu" e o "jintaishi", este o verso livre nosso. De todas estas formas poéticas, a mais interessante porque mais rigorosa, a que mais disciplina exige, é o haikai; em primeiro lugar por ser uma síntese; tem apenas dezessete silabas; e em segundo lugar, pela sua construção forçada em três versos, um de cinco silabas, outro de sete e um último também de cinco.

Genésio - E o haikai como poesia "do momento"?
Guilherme - Além das limitações de que falei, uma outra torna o haikai dificílimo e, portanto, interessantíssimo: é a de ser uma "poesia de estação" ou "saisonnière". Tem que se limitar a impressões efêmeras, do momento que passa. Pode-se mesmo dizer que somente existem quatro espécies de haikai: de primavera, de verão, de outono e de inverno. 
Genésio - O amor não tem participação nessa poesia?
Guilherme - Absolutamente. O elemento amor não entra nem pode entrar no haikai. Ele se inspira exclusivamente no aspecto da terra em cada uma dessas fases do ano. Esses "motivos" de estação, quer dizer, a razão de ser poética do haikai, chama-se em japonês "kilai" (Nota do Editor: corruptela de "kidai").
Genésio - O conceito de haikai pode ser contido numa definição?
Guilherme - Sim. E a melhor definição, contendo todos os elementos, é dos próprios japoneses: "o haikai é a anotação poética e sincera de um momento de elite". Note bem: anotação breve e poética. E pela sua qualidade de ser poesia espiritual, sincera, não pode deixar de ser feita no momento: no verão não se faz um haikai da primavera. Além do mais, é de um momento de elite. Cita-se como exemplo perfeito de haikai um de Bashô: 

No tanque morto
há o ruído de uma rã
que mergulha".

Esse haikai tem o título de "Solidão" e o título no haikai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o título.

Genésio - O haikai exige do próprio leitor um alto senso poético, segundo creio. Em caso contrário jamais poderá penetrar a essência dessa poesia. Qual sua opinião?
Guilherme - Exatamente. O haikai citado é um exemplo. Que relação haverá entre uma rã que mergulha num tanque morto com a solidão? Entretanto, acho que não há definição mais perfeita de solidão do que a que se contém nesse haikai. Veja-se mentalmente o desenho: numa água estagnada - tanque morto - a rã que mergulha abrindo em torno dela círculos concêntricos que se prolongam indefinidamente até às margens... Ora, não há nada mais "sozinho" no mundo do que o centro de uma circunferência; porque ele é único. A circunferência só pode ter um centro que só pode estar equidistante de todo o ponto da circunferência. 

Genésio - O mesmo modo, para produzir o haikai há de exigir-se muitas qualidades? 
Guilherme - Não só qualidades como é preciso, naturalmente, para produzir o haikai, uma grande iniciação. Eu a tive aqui em S. Paulo, em 37, quando fui conduzido pelo então cônsul do Japão em S. Paulo e poeta distintíssimo, Kozo Itigé, ao Clube Japonês cuja sede era na rua da Liberdade. Nesse clube realizavam-se verdadeiros "jogos florais". Doze poetas reunidos em torno de uma mesa, na terceira quarta-feira de cada mês, apresentavam cada um o seu haikai sobre um tema sorteado com um mês de antecedência. Esses haikai eram postos em concurso, sendo premiado o melhor. Lembro-me de que nessa reunião em que estive o tema dado anteriormente era este: "Brisa de primavera". Ouvi haikai interessantíssimos apresentados pelos poetas japoneses residentes em S. Paulo: empregados no comércio uns, pequenos lavradores nos arredores da Capital outros, gente humilde mas de uma invejável cultura. Aliás, no Japão, a poesia quase que é obrigatória para todas as classes... As gueixas do Yoshiwara são todas poetisas de valor... Traduzi mesmo várias poesias dessas mulheres, como "Canções de Gueixas", que figuram no meu livro "Acaso". Por exemplo: "Esconderijo". 

"Nada de mágoas, nem queixumes!
    Escondo-me na minha felicidade
    como os vaga-lumes
    que, quando querem se ocultar,
    buscam a claridade
    de um raio de luar..."

Genésio - E a transplantação para o ocidente?
Guilherme - Quem revelou autorizadamente o haikai no ocidente foi Georges Boneau. A forma poética japonesa fez furor. Poetas franceses, ingleses, alemães, norte-americanos, puseram-se a fazer haikai. Mas, sem a rígida disciplina nipônica, mais ou menos ao acaso. Foi diante disso que eu tive a ideia nesse ano de 1937 de tentar uma transplantação rigorosa, submetida à disciplina rígida, do haikai para o português. Descobri que os dois metros - de cinco e de sete silabas - eram familiares aos nossos poetas: o de cinco o metro habitual das cantigas infantis, de roda ou de ninar. Por exemplo: "Tutu Maramoa", e o de sete, o verso essencialmente popular, das trovas ou redondilhas. Note-se que a métrica japonesa corresponde exatamente à nossa, pois é também silábica. O japonês não rima, não conhece a rima. Mas usa e abusa de aliterações e onomatopeias.

Genésio - E quais as regras que estipulou para a sua transplantação?
Guilherme - Na minha fórmula de haikai, entendi de conservar a rima, pois que é uma riqueza embelezadora da nossa poesia; é a "única corda que nós acrescentamos à lira dos gregos, entre os latinos". Não temos o direito de abrir mão dessa conquista e assim construo o haikai da seguinte maneira: um verso de cinco sílabas, outro de sete e um terceiro de cinco. Os de cinco rimando entre si e o de sete com uma rima interna: a segunda sílaba rimando com a sétima.

Outubro

"No fim da alameda
há raios e papagaios
de papel de seda".

(rima: alameda com "seda" e "raios" com "papagaios")

Genésio - Ultimamente li um livro de haikai, em que entra o lirismo. Um livro todo de haikai. O que pensa?
Guilherme - Escrevi o meu primeiro haikai no dia 13 de agosto de 1937 e até hoje, 13 de maio de 1941, só consegui fazer quarenta e três haikai. É pouco, mas é assim... Exuberante poeta nacional, em uma semana, publicou trezentos e cinquenta haikai!!... (ponha assim mesmo, dois pontos de admiração e reticência...). Duvido que essas composições sejam "anotações poéticas e sinceras de momentos de elite"... E por falar em momento de elite, tenho que acreditar nele. É que ele tem que ser aproveitado no instante mesmo a sua sinceridade. Cito um caso que se passou comigo mesmo. Em março de 1938, vi uma quaresmeira, florida, maravilhosa. Era à tardinha, a luz já oblíqua do quase outono faz ajoelhar-se aos pés da árvore a sua sombra. Lembrei-me das imagens de quaresma - vestidas de roxo nas igrejas. O haikai ocorreu-me incontinente. Eu estava num ônibus; ia construindo mentalmente, improvisando, pois que o haikai é sempre improvisado. Foi quando um conhecido, um amigo - antes um inimigo - isto é, o homem que explica, cortou-me o pensamento. Apontou-me a árvore, comentando a sua beleza e dando-lhe o nome técnico, botânico da quaresmeira. Quando cheguei em casa, à noite, quis refazer o haikai. Inútil. Por mais de três horas nesse afã, nada consegui. Saiu um outro haikai, inspirado numa estrelinha que, pela minha janela eu avistava. Estava cochilando e esse movimento de pender e levantar a cabeça, de abrir e fechar os olhos... de "piscar"... "pescar"... 

"Cochilo. Na linha
eu ponho a isca de um sonho.
Pesco uma estrelinha".

O título desse haikai é "Pescaria".

Genésio - Falamos atrás sobre a iniciação necessária ao cultor do haikai. Um exemplo?
Guilherme - Perguntaram-me no Clube, para uma resposta em dez minutos: Por que a Primavera é sono?
Ora, a Primavera é a estação das flores. Tudo desperta alegremente, festivamente... Deveria ser sinônimo de vida ativa; mas de sono...
Mas consegui a resposta: a Primavera é sono porque a flor é o berço onde dorme o fruto!

Genésio - Sendo poesia de estação, o haikai será objetivo?
Guilherme - Justamente. Essa palavra vem a calhar, respondeu o autor de "Acaso". O haikai é eminentemente objetivo, acrescentou Guilherme de Almeida, ao mesmo tempo em que púnhamos um ponto final à presente entrevista. 

ALGUNS HAIKAIS DE
GUILHERME DE ALMEIDA

 AQUELE DIA

Borboleta anil
que um loiro alfinete de oiro
espeta em abril.

HISTÓRIAS DE ALGUMAS VIDAS

Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.

O POETA

Caçador de estrelas.
Chorou: seu olhar voltou
com tantas! Vem vê-las!

NÓS DOIS

Chão humilde. Então,
riscou-o a sombra de um vôo.
“Sou céu!” disse o chão.

VELHICE
Uma folha morta.
Um galho do céu grisalho.
Fecho a minha porta.

 OUTUBRO

Cessou o aguaceiro.
Há bolhas novas nas folhas
do velho salgueiro.
-x-x-x-x-x-x-

(*) Essa mesma entrevista foi reproduzida no boletim "Imprensa Paulista", órgão informativo da Associação Paulista de Imprensa, número 41, de julho/dezembro de 1980.

FONTES PESQUISADAS:
- http://www.kakinet.com/caqui/gaen.htm
- Almeida, Guilherme de. Poesia Vária. Ed. Cultrix, São Paulo, sd;
- Barros, Frederico Ozanam P. de Barros. Guilherme de Almeida - Literatura Comentada – Ed. Abril, São Paulo, 1982.

Veja ainda outras matérias sobre Guilherme de Almeida aqui no RETALHOS, clicando nos links abaixo:

http://literalmeida.blogspot.com.br/2009/07/revolucao-constitucionalista-e.html
http://literalmeida.blogspot.com.br/2009/07/guilherme-de-almeida-o-literato.html
http://literalmeida.blogspot.com.br/2009/07/guilherme-de-almeida-e-o-discurso-beira.html

(Luiz de Almeida)